sexta-feira, 26 de agosto de 2016

1º de agosto: a Tocha Olímpica e a Vigília da Dignidade

No dia 1º de agosto o estado do Rio de Janeiro já transpirava olimpíadas por todos os poros. A respeito desse ponto, gostaria de compartilhar sobre dois eventos que ocorreram nesse dia: o trajeto da tocha olímpica no município de Armação dos Búzios e a Vigília da Dignidade, promovida por KOINONIA e outras organizações e movimentos sociais.

A tocha olímpica chegou ao Rio de Janeiro no dia 27 de julho, nessa data (01 de agosto) ela continuava seu trajeto até chegar ao Maracanã, no dia 05 de agosto. Durante sua passagem pelos municípios do estado, algumas comunidades quilombolas estavam (e oxalá continuarão!) no caminho percorrido.

No município de Armação dos Búzios, a comunidade quilombola da Rasa – certificada pela Fundação Cultural Palmares em 2005 e que ainda hoje luta pela titulação de seu território, foi incluída no percurso de passagem da tocha olímpica. Como sempre, foram escolhidas pessoas para conduzir a tocha, fazendo revezamento. Pois bem, uma das escolhidas para esse nobre momento foi Eva Maria de Oliveira, conhecida por todos na região como tia Eva, mãe de Dona Uia, um símbolo da resistência e luta do povo quilombola, uma mulher de 106 anos que continua firme e consciente, sendo pedra fundamental na luta de seus descendentes pelo direito de permanecer em seu território e na retoma das terras perdidas.

Dona Eva - Tocha olímpica passa por Búzios. | Foto: Jornal Sem fronteiras

Pois bem, Tia Eva carregando a tocha é ótimo, não é? Então, o povo quilombola da região dos lagos se organizou para estar presente e dar visibilidade a existência e resistência do povo quilombola durante o evento. Nas redes sociais, pude acompanhar que participaram do evento quilombolas das comunidades de Maria Joaquina (Cabo Frio), Maria Romana (Cabo Frio), Botafogo (Cabo Frio) e Baía Formosa (Armação de Búzios). No entanto, a festa não foi tão democrática assim.

Tia Eva não foi reverenciada como representante de uma comunidade quilombola. Uma comunidade que é parte da história do município de Búzios, da história do estado do Rio de Janeiro e tem uma trajetória importante no movimento quilombola. Ela não foi levada ao palco, não houve homenagem a sua resistência e sua origem. Foi referida no material divulgado como mais uma “mulher de mais de 100 anos que conduz a tocha”. Foi aí que uma questão me veio: Tia Eva é só isso? Por que silenciar quanto a sua identidade quilombola?

Paralelamente, ainda no dia 1º de agosto, na Praça da Cinelândia - Centro do município Rio de Janeiro, aconteceu a Vigília da Dignidade. O evento fez parte da Jornada de Lutas, realizada durante o período das Olimpíadas e que contou com a participação de mais de 100 organizações do movimento social. Ao longo do dia, diversos movimentos, urbanos e rurais, comunidades tradicionais e grupos religiosos, puderam expor como estamos em constante negação da dignidade humana, mas também em como acreditamos que seja possível conviver e cuidar juntos de nossa casa comum.

A Vigília da Dignidade contou com a participação de mais de 40 quilombolas das comunidades de Maria CongaSantaRita do Bracuí - comunidade onde deixei meu umbigo enterrado, onde pesquisei e produzi minha monografia, parte de minha história pessoal; e Alto da Serra, comunidade que acompanho desde 2003, quando iniciaram seu processo de aproximação com o movimento quilombola. Durante o evento, pude reencontrar amigos e amigas quilombolas que eu não via há muito tempo. Entre eles, Seu Benedito de Alto da Serra. Reencontrei jovens que até ontem eram crianças e que hoje representam suas comunidades e reafirmam o compromisso e a esperança de um mundo digno.


Foto: Acervo KOINONIA

Ivone Bernardo, presidenta da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ) – declarou que mesmo com todo o processo de perdas de direitos e de invisibilização que as comunidades quilombolas são vítimas, a resistência e a esperança continuarão sustentando a luta quilombola, continuarão na articulação pela regularização de seus territórios e pela manutenção da vida coletiva.

Foto: Acervo KOINONIA

No final do dia de Vigília, o recado foi dado e o jongo foi cantado pela comunidade do Bracuí reverenciando a ancestralidade. Enquanto isso, no quilombo da Rasa, Tia Eva estava lá, presente e resistindo.

Mesmo com toda a tentativa de apagar, esconder e negar os quilombos, os quilombolas continuam a resistir com suas raízes profundas, cada vez mais capazes de passar por tempos difíceis.
J
Pela dignidade, pelas comunidades quilombolas!

Foto: Acervo KOINONIA




Ana Gualberto - Historiadora - Mestranda em Cultura e Sociedade – UFBA Editora do Observatório Quilombola Coordenação – Assessoria a comunidades negras tradicionais




quarta-feira, 17 de agosto de 2016

S.O.S. Quilombo Sacopã

É com grande honra que apresento aos leitores do Observatório Quilombola coluna“Caderno de Campo”, escrita por mim e Ana Gualberto.

Nosso objetivo aqui é dividir com vocês um pouco de nosso trabalho junto as comunidades remanescentes de quilombo. Atualmente atuamos basicamente nos estados do Rio de Janeiro e Bahia, mas de forma geral, nos preocupamos em acompanhar a discussão da temática no campo nacional e internacional.

A primeira página desse caderno será dedicada ao quilombo Sacopã. Localizado no bairro nobre da Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro, foi a primeiro quilombo urbano no município certificado pela Fundação Cultural Palmares (2004). Em 2012, através da Lei 5503, foi declarado pela prefeitura como Área de Especial Interesse Cultural (AEIC) e, dois anos mais tarde (2014), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária(INCRA) entregou a Portaria de Reconhecimento do Território, último passo antes da titulação definitiva que até agora, não aconteceu.

Foto: Daniela Yabeta (setembro/2014) – Momento da entrega da portaria


A presença da família Pinto na ladeira do Sacopã remonta a década de 1920, com a chegada de Manoel Pinto Júnior, sua mulher Eva Manoela da Cruz e seus filhos. O casal, proveniente de Minas Gerais, era descendente de ex-escravizados que viviam nas fazendas da região. Após a abolição da escravidão e o declínio de produção nas fazendas, a família começou a migrar em busca de oportunidades de trabalho. Depois de passarem um tempo em Nova Friburgo, mais precisamente no distrito de Amparo, chegaram ao Rio de Janeiro, onde Seu Manoel começou a trabalhar para a família Darke de Matos, proprietária de grande parte da área entre o Morro da Catacumba e a Fonte da Saudade.

De acordo com a memória dos quilombolas, nessa época, a Ladeira do Sacopã era uma trilha perigosa e com muitos trechos em pedra. Na década de 1960, durante o governo de Carlos Lacerda (1960-1965), começou a ser a implementada a política de remoção de favelas e a Lagoa passou a ser um local de grande interesse imobiliário. Dona Eva ajudava no orçamento da família vendendo quentinhas para os operários que trabalhavam nas construções das proximidades.

Em 1975, ameaçado pelas expulsões que rondavam a região, Seu Manoel impetrou uma ação de usucapião, reivindicando a posse do território que ocupava há quase 50 anos. Na década de 1980, incentivados pelos filhos José Luiz Pinto Júnior e Maria Laudelina de Freitas, conhecidos respectivamente como Luiz Sacopã e Tia Neném, além de servirem comida, transformaram o local num ponto de encontro para rodas de samba.

Diante da negativa do direito de propriedade individual do território e das constantes ameaças de expulsão, a Família Pinto tentou obter a titulação da área como remanescente de quilombo. A luta segue até hoje!

Essa trajetória de resistência chamou atenção do jovem cineasta (e meu irmão!) Diogo Yabeta, aluno do curso de graduação em Cinema na Universidade Estácio de Sá. No segundo semestre de 2015, no âmbito da disciplina Prática Documental, ministrada pelo professor Dermeval Netto, Diogo escolheu produzir um documentário sobre o quilombo Sacopã. Com relação ao motivo da escolha, ele declarou: 

“A primeira vez que estive no quilombo do Sacopã foi em 2012, quando tive a oportunidade de filmar uma entrevista realizada com o quilombola Adriano Lima, da Ilha da Marambaia, na qual ele contava sua atuação na luta pela titulação do território. Depois, eu retornei em 2014, no momento em que o INCRA entregou a Portaria de Reconhecimento do Território Quilombola do Sacopã. Eu fiquei encantado com o lugar e busquei mais informações sobre a trajetória daquela comunidade. Temos quatro quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares no município do Rio de Janeiro e pouca gente conhece a história dessas comunidades e as lutas que enfrentam para continuarem vivendo no território que habitam há várias gerações. A ideia surgiu e eu procurei o Luiz Sacopã, que topou na hora”.

No mês passado, o documentário Quilombo Sacopã foi selecionado para a I Mostra Jovens.Mov. Produzida pelos alunos do curso de Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ – Campus Nilópolis), a mostra teve como principais objetivos divulgar a produção jovem e independente no estado do Rio de Janeiro e fomentar a discussão sobre temas do cenário atual de produção audiovisual independente. Uma excelente iniciativa que contou com o apoio do Centro Cultural da Justiça Federal para a realização do evento.

Quilombo do Sacopã foi exibido no dia 27 de julho e na plateia, Cláudio Freitas (filho de Dona Neném) e Luíz Sacopã foram prestigiar o evento. O júri popular escolheu seis documentários para a final, realizada no dia 28 de julho. Além do documentário de Diogo Yabeta, também foram para final os curtas: Meio-Fio, Pau de Selfie, Ti Bum! Já é? Dia de Cosme e Damião, e o grande vencedor foi BH no Ritmo da Luta.

                                                         Centro Cultural da Justiça Federal

Dez dias depois do festival, quando planejávamos uma exibição do documentário no quilombo Sacopã, recebi a seguinte notícia divulgada no Blog Mamaterra: a Secretaria de Fazenda do Município penhorou o carro e os bens do quilombola Luiz Sacopã (73 anos) devido a supostas dívidas de trinta anos atrás. Por conta das Olimpíadas, o prefeito não pode receber as lideranças quilombolas, mas seu secretário prometeu se inteirar sobre o assunto. Enquanto isso, a Polícia Militar montou um posto móvel com soldados na entrada do quilombo.

No próximo dia 20 de agosto, a Rádio Mamaterra, o SOS Racismo Brasil e diversos grupos de direitos humanos estarão presentes no quilombo prestando solidariedade a comunidade. Que tal aproveitar e dar uma passada por lá também? O endereço é esse aí da foto: Ladeira do Sacopã, 250.

Foto: Daniela Yabeta (setembro/2014)


Para finalizar essa primeira página do caderno, preciso declarar que diferente do que muitos dizem por aí, não acredito que agosto seja o mês do desgosto. Para mim é o mês da revelação, da transformação, das renovações e de muita fé. Por isso, acho que nossa coluna começa com o pé direito!

Além de nós, que o grande orixá Omolu, senhor do mês de agosto, e todos os ancestrais quilombolas estejam presentes no próximo sábado na comunidade. Luiz Sacopã, estamos com você!



Daniela Yabeta - Historiadora - Pós-Doutoranda em História (UFF-FAPERJ) - Editora da Revista do Observatório Quilombola 

Encontro de Comunidades Quilombolas do Rio de Janeiro

Entre os dias 10-12 de agosto, estive em mais um Encontro das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro. Este foi o quinto encont...