Não sei se vocês sabem, mas passei toda a
minha infância e adolescência em São Pedro da Aldeia, cidade localizada na Região dos Lagos,
onde até hoje vive parte da minha família.
Aproveitei muito a praia do Sudoeste, meu tio
chegou a ter um quiosque por lá chamado “Pôr do Sol”. Curti a Rua da Parra, o
São Pedro Esporte Clube e a antiga pizzaria do Padre.
Ao longo de mais de vinte anos frequentando São
Pedro nas férias escolares, nunca ouvi falar de comunidade quilombola. A história que me contavam
era basicamente da presença dos jesuítas na cidade durante o período colonial e da
visita da princesa Isabel em 1868, quando ficou hospedada na Casa dos Azulejos.
Em 1993, o Bloco do Abridor, um dos mais
tradicionais do carnaval aldeense, fez uma homenagem a Gabriel Joaquim dos
Santos (1892-1985), o “homem que criou a Casa da Flor”. Na época, eu lembro de
ter perguntando quem era e onde ficava a tal casa, mas me explicaram como se
fosse uma coisa de menor importância. O tempo passou, as férias escolares acabaram
e eu nunca conheci o local.
Porém, ao entrar na vida adulta e deixar as
férias em São Pedro, quando ingressei como estagiária em KOINONIA no ano de
2005 e tive a oportunidade de conhecer o movimento quilombola do Rio de
Janeiro, descobri que na cidade havia um quilombo chamado Caveira, certificado
pela Fundação Cultural Palmares desde 1999. Ao longo desses anos, visitei São
Pedro não mais para ver minha família, mas para conhecer os quilombolas de
Caveira e principalmente, a escola quilombola Rosa Geralda da Silveira, inaugurada
em 2013, a primeira (e única) escola quilombola do estado do Rio de Janeiro
construída com recursos do programa Brasil Quilombola.
Foto Daniela Yabeta
Recentemente a equipe do projeto “Linguagem
Pública para Comunidades Quilombolas” me enviou o livreto sobre o quilombo de
Caveira. Trata-se de uma antiga demanda das comunidades de todo o Brasil que é
a transformação da linguagem técnica contida nos Relatórios Técnicos de
Identificação e Delimitação (RTID) em algo acessível aos quilombos. Para ter
acesso ao material, basta clicar aqui.
Sobre a história de Caveira, dizem o
seguinte:
“A comunidade descende de negros que já
ocupavam essa área mesmo antes da abolição da escravatura, trabalhando na
lavoura e na criação de pequenos animais. Os laços de parentesco entre os
moradores, bem como essas práticas de cultivo e criação, foram fundamentais
para a sua união na luta contra tentativas de expulsão por parte de supostos
donos das terras que chegaram à região em diferentes momentos de sua história.
Isto
aqui era uma fazenda e o nome dela era Caveira,
afirma o Sr. Glicério, da família Santos, que nela nasceu em 1927. Caveira
fazia parte de uma fazenda enorme, chamada Campos Novos, dos jesuítas.
Corresponde hoje à área que abrange todo o município de Búzios e parte de Cabo
Frio e São Pedro da Aldeia. Caveira era o lugar onde as carcaças de gado
morto eram deixadas – e os esqueletos dos animais ficavam expostos -, bem como
o local onde eram enterrados os corpos de escravizados.
Guardar o nome Caveira é uma forma de lembrar
a violência e a crueldade do tráfico negreiro e, ao mesmo tempo, apontar para
os novos tempos de resistência das comunidades quilombolas que lá se formaram.
A história da escravidão na Região dos Lagos, e em todo o litoral fluminense,
se confunde com a história da Fazenda Campos Novos e suas subdivisões ao longo
do tempo, na época em que funcionava como centro distribuidor de escravizados
africanos desembarcados em Búzios. Os escravizados eram levados até a sede da
Fazenda Campos Novos e ali passavam por uma triagem. Alguns eram encaminhados
às fazendas nucleares, onde passavam por uma chamada “engorda”, quando se
recuperavam da viagem no tumbeiro. Nos casos mais dramáticos, em que chegavam
mortos ou quase mortos, eram enviados à Fazenda da Caveira, onde pilhas de
cadáveres eram enterradas, sendo esta a origem do nome da fazenda e hoje
Quilombo da Caveira”.
Vale a pena destacar que esse tráfico
negreiro era totalmente ilegal. Em 07
de novembro de 1831, o Brasil recém-independente, proibiu o tráfico de
africanos escravizados. Através do seu Artigo 1º, a lei determinava que todos
os africanos desembarcados no território brasileiro como escravizados deveriam
ser livres. Mas na prática, isso não ocorreu e a ilegalidade prevaleceu. Os
desembarques em Búzios são a prova disso.
Esse ano a cidade de São Pedro da Aldeia
completou 400 anos. Não acompanhei as festividades, mas fico me perguntando:
Qual história foi exaltada?
A história da Casa dos Azulejos e de sua
imponente arquitetura colonial que abrigou a princesa redentora, ou a história da
Casa da Flor, uma obra prima da arquitetura espontânea construída por um homem
negro e pobre que recolhia materiais por onde andava: cacos de azulejo,
cerâmica, louça até então considerados imprestáveis?
A história dos indígenas que foram
catequizados e tirados de seu território original no Espirito Santo e trazidos
para o que hoje corresponde a cidade de São Pedro da Aldeia ou a história da
harmonia entre esses mesmos indígenas e os jesuítas?
A história da memória da brutalidade do
tráfico ilegal de africanos escravizados para o Brasil contada pelo quilombo de
Caveira ou a história da extinta Rede Ferroviária Federal de estilo art decó?
Encerro com a escritora nigeriana Chimamanda Adichie que nos
traz os “perigos da história única”: “Histórias têm sido usadas para
expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para
capacitar e humanizar”, pondera. “Histórias podem destruir a dignidade de um
povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida”.
O que quero destacar aqui é que povos, assim
como indivíduos, são complexos e formados por diferentes aspectos. Nossa tarefa
é de dar conta e perceber essa diversidade. Digo isso porque no site da
prefeitura de São Pedro da Aldeia, a experiência dos indígenas e dos africanos
escravizados são apenas citados como detalhes de uma história eminentemente
branca. São 400 anos, mas ainda dá tempo de mudar.
Para quem quer saber um pouco mais sobre a escola, escrevi dois textos. O primeiro, em parceria com o Flávio Gomes (UFRJ), foi publicado na Revista Ciência Hoje das Crianças: Na escola quilombola. O segundo foi publicado no livro História Oral e Comunidades, organizado por Hebe Mattos (UFF): A escola quilombola de Caveira e outros casos: notas de pesquisa sobre Educação e comunidades negras rurais no Rio de Janeiro (2013-2015).
Daniela
Yabeta
Historiadora
– Pós-Doc (FAPERJ) História UFF
Editora
da Revista do Observatório Quilombola
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