No último dia 16 de agosto o
Supremo Tribunal Federal (STF) adiou
o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI -3239) que trata da
validade do Decreto 4887 responsável por regulamentar a demarcação de terras de
comunidades quilombolas no território brasileiro.
Você sabe como foi que
chegamos até esse julgamento? Bem, foi pensando nessa pergunta que escrevi o
texto do nosso Caderno de Campo. Minha ideia aqui é trazer um resumo desse
processo. Vamos ver se eu consigo:
1988 – Foi promulgado em 05
de outubro de 1988, através da nossa Constituição Federal, o Artigo
68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que determinou: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os
títulos respectivos”. Vale lembrar que no mesmo ano, comemorávamos os 100 anos
da abolição da escravidão no Brasil. Todo o movimento e debate sobre o tema foi
fundamental para que a questão quilombola fosse incluída na nossa Carta Magna.
2001 - Em 10 de setembro de
2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi promulgado o Decreto 3912,
responsável por regulamentar “as disposições relativas aos processos
administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos
quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o
registro imobiliário das terras por eles ocupadas”. De acordo com seu Artigo
1º, a Fundação Cultural Palmares (FCP) foi encarregada de iniciar, dar
seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos
remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como de reconhecer, delimitar,
demarcar, titular e garantir o registro imobiliário das terras por eles
ocupadas. Para que um território fosse reconhecido e titulado como remanescente
de quilombos era necessário: 1) comprovar que as terras eram ocupadas por
quilombos em 1888; 2) comprovar que as terras continuavam ocupadas por seus
descendentes em 05 de outubro de 1988, data da promulgação da nossa
Constituição Federal. Sendo assim, tal declaração temporal restringiu
enormemente os potenciais beneficiários do Artigo 68 (CF-1988).
2003 - Durante o primeiro
ano do governo Lula, no dia 20 de novembro de 2003 – quando celebramos o Dia
da Consciência Negra, foi promulgado o Decreto 4887,
que revogou o Decreto 3912. Assim como o anterior, seu objetivo foi regulamentar
o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos
de que trata o Artigo 68 (CF-1988). Seu Artigo 2º considera “remanescente das
comunidades dos quilombos grupos étnico-raciais, segundo critérios de
auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com
a resistência à opressão histórica sofrida”. Além da questão da auto-atribuição, o Artigo 2º também determina que para a medição e
demarcação das terras, devem ser levados em consideração critérios de territorialidade
indicados pelos próprios quilombolas. Diferente do
Decreto 3912, o Decreto 4887 encarregou a Fundação Cultural Palmares (FCP) de certificar as comunidades como remanescente de quilombo. Já o processo
administrativo pela garantia do território ficou aos cuidados do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Aqui, também vale a pena
destacar que a promulgação de um novo decreto foi uma demanda dos movimentos de
comunidades negras rurais que não se sentiam contemplados com o decreto
anterior.
2004 – Uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI 3239)
foi impetrada pelo Partido da Frente Liberal (PFL, atual DEMOCRATAS). O
documento questiona o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades quilombolas, conforme estabelecido pelo Decreto 4887. De forma bem resumida, a inconstitucionalidade do Decreto 4887 é atribuída pelos seguintes motivos:
1) por conta da inexistência de uma lei prévia que confira validade ao decreto,
que é ato normativo secundário; 2) são contrários a possibilidade de
reconhecimento das pessoas como remanescentes de quilombo por auto-atribuição;
3) são contrários a demarcação das terras por indicação dos próprios
interessados, ou seja, os quilombolas.
2012 – Em 18 de abril de
2012 ocorreu o primeiro julgamento da ADI 3239. Na
ocasião, o então ministro Relator Cézar Peluso votou pela procedência da ação
para declarar a inconstitucionalidade do Decreto 4887. Resumidamente, na
interpretação do ministro, a inconstitucionalidade do Decreto 4887 ocorre pelos
seguintes motivos: 1) viola o princípio da reserva legal, ou seja, somente uma
lei poderia regulamentá-lo; 2) a desapropriação de terras públicas é vedada
pelos Artigos 183 e 193 da Constituição Federal de 1988. Na ocasião, o ministro
destacou o “crescimento dos conflitos agrários e o incitamento à revolta que a
usurpação de direitos dele decorrente pode trazer”. Portanto, seu voto tem o
“nobre pretexto de realizar justiça social”. O ministro também declarou que,
para se inteirar mais sobre o debate em torno da questão quilombola no Brasil,
leu o livro “Revolução
Quilombola: guerra racial, confisco agrário e urbano, coletivismo”, escrito
pelo jornalista Nelson Ramos (2007). O livro se refere aos quilombos
contemporâneos como “um fantasma que parece ressurgir das cinzas”. Para o autor,
o Decreto 4887 agitou muitas regiões do Brasil, o que provocou divisão e
conflito social. Além disso, Ramos defende que o Decreto 4887 fere o direito de
propriedade. Sendo assim, o presidente Lula desenterrou “mais um espectro para
assombrar e acabar com a paz em nosso campo”. Como não é minha intensão aqui entrar
numa discussão mais profunda sobre o que essa questão envolve, quero apenas
destacar que a “agitação”, “divisão” e “conflito social” ao qual Ramos se
refere, nada mais é do que a expansão de direitos à uma parcela da população
que foi historicamente discriminada. Os quilombos contemporâneos não são
fantasmas que ressurgiram das cinzas, eles sempre estiveram presentes lutando
pelos seus direitos, porém eram invisibilizados e massacrados por aqueles que
hoje enxergam neles uma grande ameaça à ordem estabelecida. A própria
promulgação do Decreto 4887 foi uma conquista dos quilombolas. Infelizmente,
Cézar Peluso mostrou que pensa diferente. Após seu voto, a ministra Rosa Weber
pediu vista de processo, e o julgamento não foi concluído.
2015 – O segundo julgamento
ocorreu em 25 de março de 2015. Diferente de Cézar Peluso, a ministra Rosa
Weber votou pela improcedência da ação. No entanto, ela defendeu o
estabelecimento de um “marco temporal” para a titulação. O “marco temporal”
traz de volta o Decreto 3912 promulgado por Fernando Henrique Cardoso em 2001,
quando as comunidades remanescentes de quilombo tinham que provar a permanência
no mesmo território na data de promulgação da Constituição Federal de 1988.
Sendo assim, o voto da ministra não levou em consideração casos em que as
comunidades foram expulsas de seus territórios violentamente. Após o voto de
Rosa Weber, o julgamento foi novamente suspenso porque o ministro Dias Tóffoli
pediu vista do processo.
2017 – Chegamos ao dia 16 de
agosto, quando o STF adiou novamente o julgamento da ADI 3239 por conta da ausência do
ministro Dias Tofolli devido a problemas de saúde. Uma nova data será agendada
pela ministra Carmen Lúcia.
Apesar de não ter ocorrido o
julgamento, a mobilização em torno da defesa pelos direitos quilombolas
continua a todo vapor. Afinal de contas, #OBrasilÉQuilombola! Para você
colaborar com essa corrente na luta por #NenhumQuilomboAMenos, assine a petição
aqui.
Espero ter ajudado com o resumo.
Daniela
Yabeta
Historiadora
– Pesquisadora Pós-DOC História UFF (FAPERJ)
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