Essa semana, eu estava organizando o material da comunidade remanescente de quilombo de Preto Forro para o Atlas do Observatório Quilombola, quando encontrei o registro maravilhoso de um depoimento da quilombola Elaine dos Santos concedido a Rosa Peralta em 2006.
Na época, Elaine era a presidenta da Associação de Remanescentes de Quilombo de Preto Forro (ARQUIFORRO) e Rosa era editora assistente do Informativo Territórios Negros.
Publicado entre 2001/2012, o Informativo Territórios Negros divulgava notícias sobre comunidades de quilombos de todo o Brasil, reunindo matérias publicadas no portal Observatório Quilombola e informações enviadas por quilombolas e pesquisadores da temática. O objetivo do periódico era contribuir para o fortalecimento da rede de informações entre as comunidades, favorecendo a luta pela identificação oficial desses territórios.
Sobre a comunidade remanescente de quilombo Preto Forro, de acordo com o material publicado na Coleção Terra de Quilombos, temos a seguinte história:
O quilombo de Preto Forro está localizado no bairro Angelim, no segundo distrito de Cabo Frio, em uma área rural desse município no estado do Rio de Janeiro. Os quilombolas vivem em uma área de 90 hectares e receberam a titulação dessas terras em 2011 pelo Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ). As terras do quilombo faziam parte da fazenda Campos Novos, localizada entre os municípios de São Pedro da Aldeia, Araruama, Armação de Búzios e Casimiro de Abreu.
A violência e a crueldade da escravidão estão marcadas na história desse quilombo e, ao mesmo tempo, revelam que mesmo em meio a esse contexto houve resistência das comunidades quilombolas que lá se formaram. A história da escravidão na região dos lagos, no litoral fluminense, se confunde com a história da Fazenda Campos Novos e suas subdivisões ao longo do tempo. Ela funcionava como centro distribuidor de escravizados africanos que eram desembarcados em Búzios, na praia atrás do Morro do Arpoador, e trazidos até a sede da Fazenda Campos Novos. Lá passavam pela triagem e eram enviados às fazendas nucleares, destinados à "engorda" para recuperação da viagem no tumbeiro (nome dado ao pequeno navio negreiro ou seu porão, em referência à tumba, pois os negros escravizados eram transportados em condições tão precárias, que muitos morriam).
A resistência dos trabalhadores agrícolas da região se deu ao longo dos anos, principalmente pela união das lutas sindical e quilombola. Na festa de comemoração da titulação, que contou com a presença de quilombolas de outras regiões e autoridade estaduais, o presidente da Associação de Remanescentes de Quilombo Preto Forro (ARQUIFORRO), Elias Santos, afirmou: "A gente se sente privilegiado com essa titulação porque quilombola vive sendo ameaçado de ser expulso de suas terras. Nós não teríamos condições de parar nas favelas, porque a gente sempre trabalhou na roça, não iríamos conseguir sobreviver". A vitório do quilombo de Preto Forro se deu à combinação do sentimento de resistência, que ganhou alento com a fundação da associação em 2005.
Naquele ano, a ARQUIFORRO já possuia um estatuto discutido e aprovado. Em 2006 a comunidade sediou o Quarto Encontro do Projeto Etnodesenvolvimento Quilombola. No evento, Elias dos Santos revelou: "Em 2004, ele (o grileiro) chegou aqui com seis capagandas para nos ameaçar. Procuramos ajuda nos órgãos públicos, mas não tínhamos retorno. Com os projetos, conseguimos ter o reconhecimento e saber o caminho para os nossos direitos e obter respeito". Devido à sua história de sucesso, Preto Forro tornou-se referência para as comunidades quilombolas vizinhas, como Rasa, Botafogo e Caveira, que ainda lutam pela titulação de suas terras.
Formada por 14 famílias, com cerca de 80 pessoas, a comunidade de Preto Forro descende dos negros que ocuparam essa área desde antes da abolição da escravatura. O quilombo é chamado também de Palhada, Morro da Batata e Campos das Éguas, fazendo referência às principais atividades dos moradores da comunidade, que plantam aipim (mandioca) e criam cavalos. O nome Preto Forro é o mais conhecido. A expressão significa "escravizado liberto, que recebeu alforria" e seu uso para designar a comunidade ressalta a relação com os antepassados. Antes da abolição, o termo era usado pelos de fora para referir-se aos moradores da comunidade.
As terras do quilombo, ocupadas pela família Santos há pelo menos quatro gerações, são de uso coletivo. Pelos relatos dos quilombolas, as terras teriam sido doadas por Antônio dos Santos a escravizados que ele alforriou. Além da parte de suas propriedades, deu-lhes seu próprio sobrenome. Ainda hoje, quase todos os moradores do quilombo são "Santos". Existe uma forte relação de parentesco na comunidade, pois, ao longo dos anos, os casamentos se deram dentro da própria família, em geral enre primos.
Ao longo dos anos, sofreram várias ameaças de grileiros que obrigaram os moradores a cercar as casas para proteger suas roças e pequenas criações, mas isso mudou o fato de reconhecerem as terras como coletivas, ou "terras de herdeiros". Existia na comunidade o papel do "dono", um parente que tinha por responsabilidade administrar as terras. Ele não era o proprietário, já que o território nunca deixou de ser comum. Seu papel era de, uma vez por ano, recolher a contribuição dos moradores para pagar os impostos territoriais. Também cuidava de outras questões, como a revisão anual das demarcações das áreas.
De acordo com os quilombolas, o primeiro dono foi Ludgério dos Santos que, por não ter filhos homens, transmitiu a função para seu genro José dos Santos. A comunidade reconhece Ludgério dos Santos, que morreu em 1951 aos 78 anos de idade, como o seu antepassado mais antigo. Em 1937, seu sobrinho, Joaquim dos Santos, que vivia em uma fazenda vizinha, foi convidado a morar nas terras da comunidade pelo genro de Ludgério, José dos Santos. Ele veio com a esposa e os filhos. Os atuais moradores da comunidade são descendentes desses dois núcleos familiares, o de Ludgério e Joaquim.
Fonte: Mamaterra
Em novembro de 2011, a comunidade de Preto Forro foi o segundo quilombo titulado pelo Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ). O depoimento de Elaine é de 2006, na época em que os quilombolas lutavam pela garantia do território. Podemos destacar três aspectos do texto: 1) a importância do reconhecimento como remanescente de quilombo; 2) o momento em que a comunidade recebeu pela primeira vez outros quilombolas do estado; 3) o enfrentamento do grileiro.
Eu tive o privilégio de ter trabalhado como estagiária do projeto Etnodesenvolvimento Quilombola, uma realização de KOINONIA e do antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Além de Preto Forro, o projeto também incluía as comunidades de Alto da Serra (Rio Claro) e Ilha da Marambaia (Mangaratiba).
O encontro dos dias 25/26 de novembro de 2006 foi realizado na Escola Agrícola Municipal Nilo Batista, localizada em Cabo Frio, próximo à comunidade. Foi muito bom relembrar esse momento. Segue o depoimento de Elaine, publicado no Informativo Territórios Negros - ano 6. n 26. nov/dez. 2006
Eliane dos Santos, da Associação de Remanescentes de Quilombo de Preto Forro (ARQUIFORRO), município de Cabo Frio (RJ) conta a seguir um pouco da trajetória e conquistas recentes da comunidade.
Desde que nos reconhecemos como remanescentes de quilombo, muitas coisas mudaram, principalmente em relação às pessoas que vivem ao redor. Antes, éramos conhecidos apenas como uma família que morava no bairro de Angelim. Agora, depois que assumimos que somos quilombolas, somos mais respeitados. Quando vamos em algum lugar, muita gente pergunta: "Vocês são da comunidade quilombola de Preto Forro? Onde fica? Podemos conhecer?". Ou seja, muitas pessoas têm interesse em ir à comunidade.
Além disso, passamos a ser convidados a participar de diversas atividades. Nas próximas semanas, por exemplo, o prefeito virá a Fazenda Campos Novos para um almoço, e nós já fomos convidados para participar. Queremos aproveitar para reivindicar algumas melhorias. No caso, pensamos primeiro em resolver o problema do acesso à comunidade, o caminho para chegar é muito difícil.
Agora também fazemos parte do conselho municipal de agricultura. Isso foi muito bom para a comunidade. Antes, para arar a terra, tínhamos muita dificuldade para conseguir um trator. Hoje, quando vamos à reunião, solicitamos o trator e em dois ou três dias ele chega. Aí, a terra fica toda pronta para a gente plantar. Aliás, recebemos agora uma proposta muito boa: a prefeitura nos deu 10kg de feijão e disse que vai comprar de nós a produção, que vai ser levada para escolas e comunidades carentes. Estamos também plantando milho, que está muito bonito.
[Sobre o evento de encerramento do projeto Etnodesenvolvimento Quilombola*, realizado nos dias 25 e 26 de novembro, em que a comunidade de Preto Forro foi anfitriã de outras nove comunidades quilombolas do Rio de Janeiro]
Para nós, esse evento foi uma das melhores coisas que aconteceram, porque reuniu não só a nossa comunidade como várias outras. E isso fortalece todo mundo. Eu não acreditei quando vi certas pessoas ali presentes, como vereadores e outras autoridades conhecidas aqui de Cabo Frio. Quase ninguém aqui no município nos conhecia, mas a partir daquele dia...
Mas a melhor parte do evento foi quando o pessoal das outras comunidades veio ver onde moramos. Acho que eles devem ter sentido o mesmo que eu quando visitei outras comunidades: como tem terra que fica nas mãos de pessoas erradas. Foi muito bem ver aquele que se diz dono das terras [o grileiro] ficou aguardando do lado de fora, enquanto nossos convidados, quase 100 pessoas, estavam lá. Depois, ele quis saber quem eram essas pessoas. Bom, se ele fosse mesmo o dono, ele botaria todo mundo pra fora, né? Foi ótimo que ele tenha visto que a gente não está só.
Daniela Yabeta
Historiadora - Pesquisadora Pós-Doc (UFF/FAPERJ)
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