sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Búzios (RJ) - 4º Evento Cultural Quilombola do QUIPEA


Foto: Daniela Yabeta

No dia 22 de outubro viajei até a cidade de Armação de Búzios para participar, a convite de Marta da Costa, do quilombo da Rasa, do 4º Evento Cultural Quilombola do QUIPEA (Quilombos no Projeto de Educação Ambiental) cujo tema foi “Território Quilombola: Urbanização e Resistência”. O encontro ocorreu no Cine Teatro Rasa.

QUIPEA é uma condicionante do licenciamento ambiental federal concedido a Shell e conduzido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), para as atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural. Estas atividades são realizadas no Parque das Conchas (ES) e Bijupirá/Salema (RJ), ambas localizadas na região da Bacia de Campos. De acordo com a coordenadora de campo, Maria Rejane Oliveira - a Jane, do quilombo de Maria Joaquina (Cabo Frio), o QUIPEA atualmente trabalha com 21 comunidades quilombolas presentes em oito municípios da região. Seu objetivo principal é o fortalecimento da organização social para que as comunidades quilombolas participem ativamente da gestão ambiental do território onde vivem. Iniciado em 2010, o QUIPEA é composto por uma comissão de dois representantes quilombolas de cada comunidade. São eles quem pautam o trabalho realizado. Jane destacou o intercâmbio entre as comunidades que participam do projeto, o resgate da cultura e a luta por políticas públicas: “Através do projeto entendemos as políticas que existem para quilombolas”.

Na ocasião foram realizadas duas mesas. A primeira contou com a participação de Sueli Ortega (Shell), Maria Rejane Oliveira (coordenadora de campo QUIPEA), Ivone Mattos Bernardo (Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Rio de Janeiro – AQUILERJ), Luciane Barbosa (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – INEPAC), Humberto Alves da Silva (Secretário de Desenvolvimento Urbano de Búzios), Leonardo Porto (Secretário de Desenvolvimento Social de Búzios), Kátia Santos Penha (Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas ES), Marta da Costa (Comissão Articuladora do QUIPEA), Leonardo Oliveira Costa (presidente da Associação Quilombola da Rasa) e Carivaldina Oliveira da Costa, a Dona Uia, grande liderança quilombola da Rasa.

O IBAMA não compareceu, mas enviou uma carta justificando a ausência no evento. No documento, destacaram que os Projetos de Educação Ambiental “buscam trazer para o processo decisório grupos sociais que sempre estiveram afastados” e, não raro, são os mais afetados pelos processos de licenciamento ambiental. Ressaltaram a importância das metodologias participativas onde, a partir de uma determinada “situação socioambiental vivida”, torna-se possível “construir coletivamente agendas de prioridades, mitigações e projetos compensatórios”. Afirmaram que desde 2005 a Coordenação-Geral de Petróleo e Gás (CGPEG) vem aprimorando suas normativas e diretrizes e, dentro desse contexto, consideram o QUIPEA um exemplo positivo. Declararam que infelizmente, nos últimos tempos, essa conjuntura favorável está sofrendo resistências. Os recursos orçamentais estão sendo limitados, há falta de disposição em aceitar alternativas que viabilize as atividades consideradas primordiais nos Projetos de Educação Ambiental e os “impactos dos empreendimentos de petróleo e gás offshore sobre as populações passaram a ser incompreendidos ou exageradamente minimizados”.

De modo geral, todas as falas quilombolas destacaram que o atual cenário político do país não é nada favorável às questões envolvendo políticas públicas para remanescentes de quilombo. Com relação ao estado do Rio de Janeiro, Ivone Bernardo falou sobre o anúncio do governo do estado de extinguir a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), responsável pelo Cadastro Único que beneficia, entre outros grupos, os remanescentes de quilombo. Ivone pediu maior participação dos quilombolas nas audiências públicas e destacou: “Não pode haver retrocesso nas políticas púbicas”.

A segunda mesa foi composta por Humberto Alves da Silva (secretário de Desenvolvimento Urbano de Búzios) e por Miguel Cardoso (antropólogo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA). Ainda sobre a conjuntura nacional, Miguel falou sobre o impeachment da presidenta Dilma Rousseff - que ocorreu sem que fosse comprovado o crime de responsabilidade cometido, destacou que a política do atual governo defende o Estado mínimo, não privilegia questões sociais e chamou a atenção para o interesse das multinacionais no aquífero Guarani, no petróleo e no pré-sal brasileiro. Diferente do antropólogo, o secretário de Desenvolvimento Urbano de Búzios fez uma fala voltada mais para as questões do município. Destacou o crescimento do bairro da Rasa nos últimos dez anos e embargo realizado pela prefeitura nas obras de construção de um luxuoso condomínio no Mangue de Pedra, um dos três existentes no mundo e fonte de subsistência dos quilombolas da Rasa.

O Quilombo da Rasa é formado por descendentes de escravos da antiga fazenda Campos Novos, propriedade da Companhia de Jesus, que remonta ao século XVII. Com a expulsão da Companhia de Jesus, a fazenda Campos Novos foi confiscada pelo governo português e passou a se chamar fazenda D´El Rey. No século XIX, após a independência do Brasil, a fazenda deixou de pertencer ao patrimônio público e passou por sucessivos arrendamentos, onde apareceram vários supostos proprietários. A região tornou-se um importante complexo agrícola que incluía outras fazendas como: Caveira, em São Pedro da Aldeia, Botafogo e Preto Forro, em Cabo Frio, e Rasa, em Búzios. Com a proibição do tráfico de africanos para o Brasil (1831), desembarques ilegais de escravos eram comuns na região de Búzios, mais precisamente nas localidades conhecidas como Barra do Una, Rasa e José Gonçalves. De lá os escravos eram levados até a fazenda Campos Novos através de caminhos internos que ainda são utilizados pelos moradores. A comunidade da Rasa foi certificada pela Fundação Cultural Palmares em 2005 como remanescente de quilombo, mas o processo de titulação do território continua em trâmite no INCRA.

Considerada como área urbana do município de Búzios, para Miguel Cardoso, a discussão em torno do território a ser titulado transforma o caso da Rasa num dos mais difíceis do estado do Rio de Janeiro. Entretanto, apesar de todos os entraves, o antropólogo acredita que o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território (RTID) seja publicado ainda esse ano. Vamos aguardar!

Leonardo Costa, filho de Dona Uia e atual presidente da Associação Quilombola da Rasa, relembrou o percurso de mais de 18 anos de luta pela garantia do território. Sobre a relação do quilombo com o poder público local, ele declarou: “Espero que com esse evento as políticas públicas no município comecem a valer, assim como a relação comunidade/município”.

No dia seguinte o evento continuou com a apresentação de vários grupos culturais quilombolas. Infelizmente eu não pude participar, mas tenho certeza que foi um sucesso.


Foto: Ivone Bernardo


Para finalizar, vale lembrar que desde maio de 2016, quando Michel Temer assumiu como presidente interino após afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, a política para titulação de territórios remanescentes de quilombo tem passado por sucessivas alterações. A última delas ocorreu no dia 29 de setembro através da publicação do Decreto 8.865, que transfere a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário para a Casa Civil da Presidência da República e dispõe sobre a vinculação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

Logo em seguida, em 05 de outubro, a base do governo aprovou o projeto que acaba com a obrigatoriedade da Petrobras ser sócia e operadora única do pré-sal, o que ampliará a participação privada na exploração dos campos. Dias antes (27 de setembro), o presidente da Shell, Ben van Beurden (Chief Executive Officer – CEO), reuniu-se com Michel Temer e afirmou que o Brasil é um dos principais países de interesse para a petroleira investir e ter "parceria" com a Petrobras.

Diante de tantas mudanças, dá para entender melhor o clima de incerteza que pairou sobre o encontro.
Apesar dos pesares, parabenizo os quilombolas da Rasa pela organização do evento!
Seguimos na luta!

Daniela Yabeta - Pós-Doutoranda em História (UFF- FAPERJ) - Editora da Revista do Observatório Quilombola


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Encontro de Comunidades Quilombolas do Rio de Janeiro

Entre os dias 10-12 de agosto, estive em mais um Encontro das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro. Este foi o quinto encont...