sexta-feira, 25 de novembro de 2016

#OCUPATUDO e os quilombos contemporâneos

No mês de novembro eu tive a oportunidade de discutir sobre titulação de territórios remanescentes de quilombo em duas ocasiões bem bacanas. A primeira delas (12/11) ocorreu na KIZOMBA – Feira de Africanidades do Colégio Pedro II. A segunda (17/11) foi no Ocupa ICHF-UFF. Exatamente por isso, não poderia encerrar o mês, justamente quando celebramos o Dia da Consciência Negra (20/11), sem mencionar essas experiências tão enriquecedoras aqui no nosso Caderno de Campo.

Toda vez que eu ouço a palavra kizomba eu me remeto ao ano de 1988, quando comemoramos o centenário da abolição e a promulgação da nossa constituição federal. Nesse mesmo ano, a Unidos de Vila Isabel foi campeã do carnaval carioca com o samba-enredo “Kizomba, festa da raça”, de Rodolpho de Souza, Jonas e Luiz Carlos da Vila. Desde então, o samba tornou-se um clássico e uma fonte de inspiração constante.

De origem banto, a palavra kizomba significa “festa/festejo” e foi esse o espírito da Feira de Africanidades do Colégio Pedro II – Campus Realengo II. Ao longo do dia, ocorreram várias atividades orientadas por diferentes grupos com o objetivo de reconhecer e fortalecer a herança africana e os valores da cultura afro-brasileira. De acordo com a equipe multidisciplinar de professores responsáveis pela organização do evento, a ideia é envolver toda a comunidade escolar no cumprimento da Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira na educação básica. Na ocasião, participei da mesa sobre “Movimentos Negros no Brasil” e tive o privilégio de conhecer o jornalista Carlos Alberto Medeiros, um dos maiores especialistas brasileiro em ações afirmativas e importante militante do movimento negro desde a década de 1970.



Foto: Roberta Freire


Na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde atualmente faço estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História, os estudantes do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) decidiram em assembleia (01/11) pela ocupação do espaço em protesto contra: 1) o governo de Michel Temer; 2) a Proposta de Emenda Constitucional nº 55 (PEC 55/241); 3) a Medida Provisória 746; 4) a reforma da Previdência Social; 5) o Projeto de Lei 867/2015 que inclui o Programa Escola Sem Partido.





A ocupação ocorre através da auto-organização dos estudantes que compartilham tarefas estruturais, de limpeza, segurança, alimentação, organização de debates, aulas públicas, oficinas e etc. Ao lado dos professores Mário Jorge (História), André Dumans (Sociologia) e Deborah Bronz (Antropologia), participei da atividade interdisciplinar intitulada “Lutas camponesas, indígenas e quilombolas”.




Foto: Ocupa ICHF - UFF

Hoje no Brasil, mais de mil escolas e mais de cem universidades estão ocupadas protestando pelos mesmos motivos listados pelo pessoal do Ocupa ICHF-UFF. O Colégio Pedro II é uma dessas escolas.




Foto: Ocupa CPII Real

Em ambos os encontros, durante as conversas com os alunos e professores, falamos sobre a Constituição Federal de 1988, quando através do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), foi estabelecido o direito das comunidades remanescentes de quilombo à titulação de seus territórios. Lembramos do 20 de novembro de 2003, quando foi promulgado o Decreto 4887 pelo então presidente Lula, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombo. Destacamos que o título do território não é emitido em nome das pessoas que compõem o grupo, mas sim em nome da associação que representa a comunidade. Chamamos atenção para a diferença do número de comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, do número de territórios titulados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da quantidade de processos que acabam no judiciário através de ações possessórias impetradas de forma individual ou coletiva contra os quilombolas.

Falamos também sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3239) e sobre a PEC 161/2007. A ADI foi proposta em 2004 pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM) e questiona a constitucionalidade do Decreto 4887. O julgamento no Superior Tribunal Federal teve início em 2012. Na ocasião, o ministro relator Cezar Peluso votou pela procedência da ADI, ou seja, considerou o referido decreto inconstitucional. Por conta do pedido de vista da ministra Rosa Weber, o julgamento foi suspenso e só retornou em 2015. Diferente de Peluso, Weber votou pela improcedência da ação e defendeu a constitucionalidade do Decreto 4887. No entanto, o julgamento foi suspenso mais uma vez devido a um novo pedido de vista do processo feito pelo ministro Dias Tófoli. Quanto a PEC 161/2007, de autoria do Deputado Federal Celso Maldaner, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB-SC), trata-se de uma tentativa de modificar a redação do Artigo 68 (ADCT – CF/88). A proposta é que a titulação dos territórios quilombolas passe a ser uma atribuição do Poder Legislativo, não mais do Poder Executivo. Mais uma manobra para dificultar (ainda mais!) o direito assegurado às comunidades quilombolas diante de uma bancada ruralista forte no Congresso Nacional.

Para finalizar, falamos sobre a situação de incerteza vivida pelas comunidades quilombolas durante o atual governo de Michel Temer. Desde que assumiu como presidente interino em 12 de maio, após o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, Temer tem promovido um verdadeiro retrocesso no que se refere à política de titulação quilombola. Através da Medida Provisória 726, que dispõe sobre a organização da presidência da República e dos ministérios, o Ministério da Educação e Cultura passou a ser o órgão responsável pela garantia do território quilombola.

A notícia causou grande impacto no movimento quilombola que não admitiu voltar com uma política que foi utilizada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, quando o Decreto 3912 de 2001 delegava à Fundação Cultural Palmares a competência para iniciar, dar prosseguimento e concluir o processo administrativo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras ocupadas por remanescentes de quilombo. E o pior, Mendonça Filho, do Democratas, foi nomeado ministro da Educação e Cultura, o mesmo partido que ajuizou a ADI 3239 contra o Decreto 4887 em 2004.

A repercussão foi tão negativa que em 19 de maio a MP 726 foi retificada mantendo a titulação das terras quilombolas com o Incra que, diante da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), passou a ser atribuição do recém-criado Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário.

Mas as mudanças não pararam por aí. Em 27 de maio, através do Decreto nº 8780, o Incra deixou de ser atribuição do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário e passou a ser uma atribuição da Casa Civil. Meses depois, em 29 de setembro, o Decreto nº 8865, transferiu a estrutura do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário. O Incra então, passou a ser vinculado a essa nova secretaria que, por sua vez, está subordinada também a Casa Civil. Tudo isso ocorreu em menos de seis meses de (des)governo.

A experiência de discutir sobre quilombos contemporâneos em ocupações me fez pensar sobre suas similaridades. Percebi então, que são movimentos que buscam a garantia do território. Para os quilombolas, o território não é apenas aquele espaço ocupado de forma individual, ele corresponde a uma área comum e leva em conta a possibilidade de garantia de sobrevivência do grupo. Para os estudantes, a aprovação da PEC 55/241, que pretende congelar os investimentos nas áreas sociais por vinte anos, representa um verdadeiro desmonte dos serviços públicos. Uma das sérias ameaças é o fim da universidade pública. Portanto, em última instância, os estudantes também lutam para garantirem o território que ocupam. Sendo assim, percebemos mais uma vez, diferentes formas de aquilombamento, suas estratégias e seus contextos específicos.


Daniela Yabeta - Pós-Doutoranda em História (UFF - FAPERJ) - Editora da Revista do Observatório Quilombola;

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