terça-feira, 2 de maio de 2017

Cuidando para cuidar: meio ambiente e religiosidade de matriz africana.

Hoje resolvi trazer para nosso Caderno de Campo uma reflexão sobre algo fundamental para minha religiosidade: o cuidado com o meio ambiente.

Pensar as religiões de matriz africana é pensar o cuidado. Cuidado com os seres humanos e com a natureza, já que nossa religião é fundamentada no culto aos orixás, que são parte da natureza.

Cada orixá representa um elemento, uma parte do todo que compõe o mundo. Eles vivem dentro de nós, porque afinal de contas, somos parte desse mundo. Mais do que ser parte, somos dependentes dos elementos da natureza para cultuar nossos orixás e viver em harmonia. 

Para compreendermos melhor essa dimensão, trouxe um oriki do orixá Ossain, o detentor do saber de todas as folhas.

Imagem: Felipe Caprini

Ossain, filho de Nanã e irmão de Oxumarê, Euá e Obaluaê, era o senhor das folhas, da ciência e das ervas, o orixá que conhece o segredo da cura e dos mistérios da vida. Todos os orixás recorriam a Ossain para curar qualquer moléstia, qualquer mal do corpo. Todos dependiam de Ossain na luta contra a doença. Todos iam à casa de Ossain oferecer seus sacrifícios. Em troca Ossain lhes dava preparos mágicos: banhos, chás, infusões, pomadas, abo, beberagens. O grande senhor das folhas curava as dores, as feridas, os sangramentos; as disenterias, os inchaços, as fraturas; curava as pestes, febres, órgãos corrompidos; limpava a pele purulenta e o sangue pisado; livrava o corpo de todos os males. Um dia Xangô, senhor da justiça, julgou que todos os outros orixás deveriam compartilhar o poder de Ossain, conhecendo o segredo das ervas e dom da cura. Ele então, sentenciou que Ossain dividisse suas folhas com os outros. Porém, Ossain se negou a cumprir as ordens de Xangô. Não satisfeito, Xangô ordenou que Iansã soltasse o vento e trouxesse ao seu palácio todas as folhas das matas de Ossain para que fossem distribuídas aos orixás. Iansã fez o que Xangô determinara. Gerou um furacão que derrubou as folhas das plantas e as arrastou pelo ar em direção até seu palácio. Ossain percebeu o que estava acontecendo e gritou: “Euê uassá!”: as folhas funcionam! Ele ordenou que as folhas que voltassem para suas matas e as folhas prontamente obedeceram suas ordens. No entanto, aquelas que já estavam em poder de Xangô perderam o axé, perderam o poder de cura. Xangô, um orixá justo, admitiu a vitória de Ossain e entendeu que o poder das folhas devia ser exclusivamente dele e que assim deveria permanecer através dos séculos. Apesar de tudo, Ossain deu uma folha para cada orixá, deu uma euê para cada um deles. Cada folha com seus axés e seus ofós, que são as cantigas de encantamento, sem as quais as folhas não funcionam. Ossain distribuiu as folhas para os orixás para que eles não mais o invejassem. Eles também podiam realizar proezas com as ervas, mas os segredos mais profundos ele guardou para si. Ossain não conta seus segredos para ninguém, ele nem mesmo fala, se comunica através de seu criado Aroni. Os orixás ficaram gratos a Ossain e sempre o reverenciam quando usam as folhas. (Para saber mais sobre esse e outros orikis, recomendo o livro “Mitologia dos Orixás” de Reginaldo Prandi)


Oriki, que é uma das formas como aprendemos sobre os orixás e sobre a vida. Destaco em especial, três pontos para reflexão presentes nesse oriki de Ossain: 1) Sobre os orixás e seus elementos: Iansã utiliza seu poder sobre o vento para levar até Xangô, senhor da justiça e também do fogo, as folhas que são de domínio de Ossain; 2) Sobre a necessidade de cooperação e respeito: Xangô compreende ser direito de Ossain o domínio sobre as folhas e a cura através delas; 3) Sobre benevolência: mesmo provando que poderia acumular para si todo o saber, Ossain decide compartilhar com os outros parte de seu conhecimento.

No candomblé compreendemos que nada pode ser realizado sozinho, precisamos uns dos outros, precisamos de pessoas ao nosso redor, precisamos da natureza para o mais elementar ritual. Recriamos a organização familiar dentro de nossos terreiros, passamos a ter mães, pais, irmãos, tias, tios e demais entes. Ganhamos uma família que ensina, corrige quando necessário e compartilha. 

Imagem: Carybé

Ao contemplarmos a natureza vemos uma das formas de nossos orixás. Quando entramos no mar, saudamos Yemanjá. Quando entramos num rio ou numa cachoeira, saudamos Oxum - dona das águas doces. Nas matas, saudamos Oxossi. Ao usarmos as folhas, saudamos Ossain. Sendo assim, em nossa perspectiva religiosa, defender o meio ambiente é defender nossa religião.

Acontece que, com o advento da modernidade, torna-se necessário também para as comunidades de terreiros, discutir sobre o efeito de nossas ações com relações aos impactos ambientais.

Mesmo aprendendo com nossos antepassados sobre como utilizar a natureza de forma harmoniosa, muitas pessoas não se preocupam em preservá-la. Desta forma, esse “não cuidar” acabou servindo (em alguns momentos) como justificativa para ações de intolerância religiosa, culpando os religiosos de matriz africana de depredação ambiental e outros crimes contra o meio ambiente. Para mais informações sobre a temática sugiro o Dossiê Intolerância Religiosa de KOINONIA.

Foi necessária uma reação das casas e em alguns casos, ações de reeducação ambiental e de diálogo sobre esta questão. Muitos desses espaços tem contribuído de forma constante nos processos de reflexão, mitigação de impactos locais, mobilização e formação popular sobre o tema ambiental. Trouxe aqui alguns exemplos:

Aderbal Ashogun - ashogum (ogam responsável pelos sacrifícfios) do Ilê Omiojuaro de Mãe Beata de Yemonjá, em parceria com a Fundação Cultural Palmares produziram a cartilha Oku Abo, uma ferramenta educativa criada pelo projeto de educação ambiental para religiões afro-brasileiras. O objetivo da cartilha é de resgatar o saber tradicional das religiões afro-brasileiras e promover a preservação do meio ambiente.


Iyá Jaciara Ribeiro - Iyalorixá do Abassá de Ogum localizado em Itapuã, Salvador, atua em sua localidade com ações de educação ambiental e recolhendo materiais não biodegradáveis na Lagoa do Abaeté. Alem de desenvolver diversas ações em combata a intolerância religiosa.

KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço atua desde sua fundação, em 1994, junto a comunidades de terreiros de candomblé em Salvador e região metropolitana. Durante estes anos de trabalho, um dos temas de reflexão foram as questões ambientais seus impactos junto as comunidades, formas de reação e enfrentamentos, alternativas e ações realizadas pelas comunidades. Em 2008 KOINONIA realizou o Seminário Público de Comunidades Negras Rurais em Salvador, onde reuniu representantes de comunidades negras tradicionais (terreiros e quilombos) para refletir sobre identidade e desenvolvimento. A temática ambiental teve um grande espaço ocupado neste debate que teve como fruto o livro “Identidade e Desenvolvimento”. Na ocasião, também produzimos o vídeo “Meio Ambiente”, vale a pena dar uma conferida. 


Nas últimas décadas as religiões de matriz africana têm tentado ampliar seus espaços de atuação e discussão, um deles é o debate acadêmico.

Sobre a temática do meio ambiente, destaco as recentes pesquisas de: 1) Mariana Vitor Renou (Mestrado em Antropologia – Museu Nacional/ UFRJ, 2011) Oferenda e lixo religioso: como um grupo de sacerdotes do candomblé angola de Nova Iguaçu 'faz o social; 2) Cláudia Oliveira dos Santos (Mestrado em Modelagem e Ciência da Terra e Meio Ambiente/ UEFS, 2009) “Kosi omi, kosi orixá. Sem água, sem orixá. Modelagem etnoecológica sobre uso da água no Ilê Axé Iyá Nassô Oká / Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia”; 3) Felipe Rodrigues Martins (Mestrado em Ciências e Meio Ambiente/ UFPA, 2015) “Candomblé e Educação Ambiental: uma possível e contrutiva relação”.

Também vale a pena registrar os trabalhos de José Flávio Pessoa de Barros e de Mãe Stela de Oxossi, especialmente os livros: 1) Ewe Orixá – Uso litúrgico e terapêutico dos vegetais nas casas de candomblé, escrito por Pessoa de Barros em parceria com Eduardo Napoleão (1999); 2) Epé Laiyé – Terra Viva, onde Mãe Stela passeia pelo universo infantil para falar de candomblé e meio ambiente (2009). 



José Flávio Pessoa de Barros (1943/2011) era professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e babalorixá fundador do Ilê Asé Omin Iwyn Odara, localizado em Cachoeiras de Macacu (RJ). Maria Stela Azevedo Santos, a Mãe Stela de Oxossi, é a atual ialorixá do Ilê Axé Opo Afonjá, localizado em Salvador (BA) e membro da Academia de Letras da Bahia.

Claro que não poderia deixar de lado o clássico “Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá” de Pierre Verger, fotógrafo e etnólogo francês (1902/1996). Iniciado babalaô em 1952, Verger recebeu o nome de Fatumbi, que significa “renascido pela graça de Ifá”. Ao longo de sua vida, Verger catalogou o uso de diversas plantas iorubas. O livro apresenta uma (pequena) parte de sua pesquisa (1995). 


Para finalizar, como sempre buscamos algum tipo de proteção, não custa nada ter em casa uma mudinha de espada de São Jorge! Aliás é bom lembrar que dia 23 de abril acabamos de comemorar o dia do santo guerreiro, sincretizado no Sudeste com Ogum, o orixá do ferro e senhor dos metais - e no Nordeste com Oxóssi, o grande caçador. 

Deixo aqui uma dica sobre como preparar um vasinho de plantas de proteção para cuidar de sua casa e de você:

Compre ou peça (o melhor é ganhar!) mudas de: arruda, comigo-ninguém-pode, pimenta, alecrim, manjericão, espada-de-são-jorge, abre-caminho e guiné. Plante em um vaso de tamanho grande ou uma jardineira. Use adubo orgânico. Coloque as mãos na terra e converse com as plantas. Peça proteção a todos os orixás, principalmente ao dono das folhas: Ossain, “Ewe assá!” – Afinal de contas, “Omi Kosi, Éwé Kosi, Òrìsà Kosi”: Sem água, sem folha, sem orixá!


Espada de São Jorge

P.S: Uma versão desse texto foi publicada no livro: SOUZA, Daniel (Org). Juventude e Justiça socioambiental: perspectivas ecumênicas. 01. ed. São Leopoldo: Cebi, 2012. v. 1000. 152p.

Ana Gualberto
Yaô d’Oxum do Ilê Adufé
Historiadora, Mestranda em Cultura e Sociedade - UFBA
Assessora de KOINONIA

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