domingo, 22 de abril de 2018

Revisitando o Informativo Territórios Negros: Quilombo de Santa Rita do Bracuí (RJ)

Dando continuidade a nossa atualização do Atlas Quilombola, o Caderno de Campo dessa semana vem com o quilombo do Bracuí.


Em setembro/outubro de 2004, o Informativo Territórios Negros nº 16 publicou o seguinte texto sobre a comunidade:


A Comunidade Remanescente de Quilombo de Santa Rita do Bracuí, reconhecida pela FCP em 1999, encontra-se localizada em Angra dos Reis e originou-se de uma doação formal daquelas terras pelo fazendeiro aos seus escravos. Em seu testamento, este fazendeiro deixava 260 alqueires de terra aos seus escravos, em 1877, onze anos antes da abolição da escravatura. Além das parcelas individuais, que variavam entre um e cinco alqueires, o Comendador Breves deixou também uma área de 80 alqueires para todos os seus escravos “possuírem, morarem e trabalharem em comum”. A memória que os moradores de Bracuí receberam de seus antepassados fala de uma relação de cordialidade do fazendeiro com seus escravos, da qual a doação seria a maior prova. Para os moradores de Bracuí, as terras que ocupam foram doadas aos seus ancestrais e são também de propriedade de Santa Rita, a padroeira da fazenda. Contam os moradores que havia sete imagens da santa espalhadas por toda a fazenda, mas todas foram roubadas. A que está atualmente no altar da igreja é uma cópia. Algumas pessoas afirmam que dentro da imagem havia ouro, outros dizem que guardava o documento que prova serem os descendentes de escravos os verdadeiros donos daquelas terras, o que explicaria a confusão a respeito do direito de uso daquela terra. Após a abolição, os descendentes dos escravos da fazenda Santa Rita de Bracuí permaneceram naquelas terras durante décadas em posse pacífica e sem contestação. As primeiras tentativas de expropriação direta e violenta de suas terras ocorreram na década de 40, mas foram resolvidas pelos próprios moradores, que expulsaram os invasores. Mas o que os moradores só viriam a saber no início da década de 70 é que ações cartoriais realizadas no final do século XIX já lhes havia inviabilizado formalmente o direito à terra. Com base nessas ações, parte de suas terras foram expropriadas para a construção da estrada Rio-Santos e parte pelos empreendimentos turísticos. A partir de 1975, os moradores passaram a sofrer pressões da empresa ‘Bracuhy Administração, Participações e Empreendimentos Ltda’ e, mais tarde, iniciaram-se as intimidações com homens armados, proibição de plantio, implantação de barragens ao longo do Rio Bracuí. Em 1978, os moradores entraram com uma ação ordinária de reivindicação contra a empresa, através de um advogado e assessor da FETAG. Os moradores começaram também a receber assessoria da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Fase. O advogado usou como mecanismo de defesa a tese da posse imemorial, mas havia dificuldade de comprovar que os moradores eram descendentes dos herdeiros do Breves. Somente cinco famílias conseguiram comprovar, e a ausência de uma legislação que defendesse o direito coletivo impediu que o reconhecimento fosse extensivo às outras famílias. Assim, a sentença foi favorável à empresa. Depois de um longo período de conflitos fundiários, a comunidade perdeu a parte de suas terras localizadas próximo ao mar para o empreendimento turístico Bracuhy. Hoje, com as dificuldades de manutenção e comercialização do plantio de produtos agrícolas, as terras de Santa Rita do Bracuí são utilizadas fundamentalmente para moradia. Os constantes parcelamentos entre os filhos de uma família forçaram os moradores a ocupar lotes que variam entre um e cinco hectares. Assim, uma das principais fontes de renda das famílias passou a ser os empregos no Marina Porto Bracuhy, localizado dentro de seu território original. O reconhecimento dessas famílias como comunidade remanescente de quilombos que poderia representar a Regularização de suas terras e a legalização das posses em nome dos descendentes de escravos das terras de Santa Rita até o momento, no entanto, não contribuiu para legalizar o direito que as famílias têm às terras de seus ancestrais.



Com base nesse texto, destacarei mais alguns apontamentos sobre a comunidade.

Certificada pela Fundação Cultural Palmares em 16 de março de 1999 (processo nº 01420.000103/199-87) a comunidade luta no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) pela titulação de seu território desde 2006 (processo nº 54180.000971/2006-10).

A reivindicação dos quilombolas do Bracuí pelo território que ocupam, tem como principal documento de sustentação, o testamento do antigo proprietário da fazenda de Santa Rita, o poderoso comendador José de Souza Breves. Em 1878, ele deixou parte das terras para os que lá viviam “possuírem, morarem e trabalharem em comum”. Muito antes da publicação do Decreto 4887, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, José Breves já especificava as “relações territoriais específicas” descritas no art. 2º do referido decreto. Para saber mais sobre o proprietário do Bracuí no século XIX, sugiro a dissertação de mestrado de Thiago Campos: O Império dos Souza Breves Nos Oitocentos: política e escravidão nas trajetórias dos comendadores José e Joaquim de Souza Breves". 

Além do testamento, a memória da comunidade com relação a experiência da escravidão, tem como grande destaque o naufrágio do brigue americano Camargo, ocorrido em 1852. Apesar da proibição ao tráfico de africanos escravizados em 07 de novembro de 1831, José Breves e seu irmão, o também comendador Joaquim José de Souza Breves, continuaram investindo em negócios (agora ilegais) negreiros. Confira aqui a narrativa de Seu Manoel Moraes sobre o episódio de desembarque e aprisionamento dos africanos.

Apesar do testamento nunca ter sido cumprido, os descendentes dos ex-escravizados do comendador Breves continuaram vivendo por lá por várias gerações. Entretanto, o acirramento em torno da garantia do território tomou força na década de 1970, com a construção da estrada Rio-Santos, como bem destaca o texto. O conflito entre a comunidade e a empresa Bracuhy Administração, Participações e Empreendimentos Ltda chegou ao judiciário. Apesar de contarem com a assessoria da Federação dos Trabalhadores em Agricultura do Rio de Janeiro (FETAG), da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), a sentença foi favorável a empresa e os quilombolas perderam parte do território próximo ao mar. Para saber mais sobre o conflito, sugiro a leitura da dissertação de mestrado de Sandra Bragatto: Descendentes de escravos em Santa Rita do Bracuí: memória e identidade na luta pela terra. 

Mesmo com a derrota, a comunidade de Santa Rita do Bracuí continuou na luta por suas terras. Nesse sentido, o art. 68 (ADCT) da Constituição Federal de 1988, que determina “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que esteja ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, foi essencial para a sobrevivência do grupo.

Em 2015, tive a oportunidade de trabalhar no projeto “Passados Presentes: Memória da Escravidão no Brasil”, uma iniciativa da Rede de Pesquisa Passados Presentes (LABHOI/UFF e NUMEM/UNIRIO) e financiada pelos editais: Petrobras de Patrimônio Imaterial, FAPERJ/COLUMBIA GLOBAL CENTER e FAPERJ nº35/2014 de Apoio à Difusão e Popularização da Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Sob a coordenação de Hebe Mattos, Martha Abreu e Keila Grinberg, construímos em parceria com os quilombolas do Bracuí, um roteiro de visitação ao território disponibilizado no site e no aplicativo para celular. O roteiro turístico nos leva até a Exposição Memorial do Quilombo do Bracuí, onde conhecemos a “história de como funcionavam as antigas fazendas negreiras do litoral sul fluminense e decomo elas se tornaram improdutivas após o fim do tráfico atlântico de escravospara o Brasil”Todas as questões que tratamentos nesse texto, constroem a narrativa da história do quilombo do Bracuí: tráfico ilegal de africanos escravizados, o testamento de José Breves, a construção da estrada Rio-Paulo, os conflitos pela garantia do território, o processo quilombola e a juventude jongueira.


Para visitar a comunidade e conhecer de perto esse trabalho, basta procurar a quilombola Marilda Souza, profunda conhecedora das histórias do Bracuí. Agendem uma data, não deixem de mergulhar na cachoeira e experimentem o café quilombola e o maravilhoso frango com palmito (plantado na região!). É uma delícia!

Daniela Yabeta 


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