quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Revisitando o quilombo de Preto Forro - Depoimento de Elaine Santos (2006)

Essa semana, eu estava organizando o material da comunidade remanescente de quilombo de Preto Forro para o Atlas do Observatório Quilombola, quando encontrei o registro maravilhoso de um depoimento da quilombola Elaine dos Santos concedido a Rosa Peralta em 2006. 

Na época, Elaine era a presidenta da Associação de Remanescentes de Quilombo de Preto Forro (ARQUIFORRO) e Rosa era editora assistente do Informativo Territórios Negros. 

Publicado entre 2001/2012, o Informativo Territórios Negros divulgava notícias sobre comunidades de quilombos de todo o Brasil, reunindo matérias publicadas no portal Observatório Quilombola e informações enviadas por quilombolas e pesquisadores da temática. O objetivo do periódico era contribuir para o fortalecimento da rede de informações entre as comunidades, favorecendo a luta pela identificação oficial desses territórios. 

Sobre a comunidade remanescente de quilombo Preto Forro, de acordo com o material publicado na Coleção Terra de Quilombos, temos a seguinte história:

O quilombo de Preto Forro está localizado no bairro Angelim, no segundo distrito de Cabo Frio, em uma área rural desse município no estado do Rio de Janeiro. Os quilombolas vivem em uma área de 90 hectares e receberam a titulação dessas terras em 2011 pelo Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ). As terras do quilombo faziam parte da fazenda Campos Novos, localizada entre os municípios de São Pedro da Aldeia, Araruama, Armação de Búzios e Casimiro de Abreu. 

A violência e a crueldade da escravidão estão marcadas na história desse quilombo e, ao mesmo tempo, revelam que mesmo em meio a esse contexto houve resistência das comunidades quilombolas que lá se formaram. A história da escravidão na região dos lagos, no litoral fluminense, se confunde com a história da Fazenda Campos Novos e suas subdivisões ao longo do tempo. Ela funcionava como centro distribuidor de escravizados africanos que eram desembarcados em Búzios, na praia atrás do Morro do Arpoador, e trazidos até a sede da Fazenda Campos Novos. Lá passavam pela triagem e eram enviados às fazendas nucleares, destinados à "engorda" para recuperação da viagem no tumbeiro (nome dado ao pequeno navio negreiro ou seu porão, em referência à tumba, pois os negros escravizados eram transportados em condições tão precárias, que muitos morriam). 

A resistência dos trabalhadores agrícolas da região se deu ao longo dos anos, principalmente pela união das lutas sindical e quilombola. Na festa de comemoração da titulação, que contou com a presença de quilombolas de outras regiões e autoridade estaduais, o presidente da Associação de Remanescentes de Quilombo Preto Forro (ARQUIFORRO), Elias Santos, afirmou: "A gente se sente privilegiado com essa titulação porque quilombola vive sendo ameaçado de ser expulso de suas terras. Nós não teríamos condições de parar nas favelas, porque a gente sempre trabalhou na roça, não iríamos conseguir sobreviver". A vitório do quilombo de Preto Forro se deu à combinação do sentimento de resistência, que ganhou alento com a fundação da associação em 2005. 

Naquele ano, a ARQUIFORRO já possuia um estatuto discutido e aprovado. Em 2006 a comunidade sediou o Quarto Encontro do Projeto Etnodesenvolvimento Quilombola. No evento, Elias dos Santos revelou: "Em 2004, ele (o grileiro) chegou aqui com seis capagandas para nos ameaçar. Procuramos ajuda nos órgãos públicos, mas não tínhamos retorno. Com os projetos, conseguimos ter o reconhecimento e saber o caminho para os nossos direitos e obter respeito". Devido à sua história de sucesso, Preto Forro tornou-se referência para as comunidades quilombolas vizinhas, como Rasa, Botafogo e Caveira, que ainda lutam pela titulação de suas terras. 

Formada por 14 famílias, com cerca de 80 pessoas, a comunidade de Preto Forro descende dos negros que ocuparam essa área desde antes da abolição da escravatura. O quilombo é chamado também de Palhada, Morro da Batata e Campos das Éguas, fazendo referência às principais atividades dos moradores da comunidade, que plantam aipim (mandioca) e criam cavalos. O nome Preto Forro é o mais conhecido. A expressão significa "escravizado liberto, que recebeu alforria" e seu uso para designar a comunidade ressalta a relação com os antepassados. Antes da abolição, o termo era usado pelos de fora para referir-se aos moradores da comunidade. 

As terras do quilombo, ocupadas pela família Santos há pelo menos quatro gerações, são de uso coletivo. Pelos relatos dos quilombolas, as terras teriam sido doadas por Antônio dos Santos a escravizados que ele alforriou. Além da parte de suas propriedades, deu-lhes seu próprio sobrenome. Ainda hoje, quase todos os moradores do quilombo são "Santos". Existe uma forte relação de parentesco na comunidade, pois, ao longo dos anos, os casamentos se deram dentro da própria família, em geral enre primos. 

Ao longo dos anos, sofreram várias ameaças de grileiros que obrigaram os moradores a cercar as casas para proteger suas roças e pequenas criações, mas isso mudou o fato de reconhecerem as terras como coletivas, ou "terras de herdeiros". Existia na comunidade o papel do "dono", um parente que tinha por responsabilidade administrar as terras. Ele não era o proprietário, já que o território nunca deixou de ser comum. Seu papel era de, uma vez por ano, recolher a contribuição dos moradores para pagar os impostos territoriais. Também cuidava de outras questões, como a revisão anual das demarcações das áreas. 

De acordo com os quilombolas, o primeiro dono foi Ludgério dos Santos que, por não ter filhos homens, transmitiu a função para seu genro José dos Santos. A comunidade reconhece Ludgério dos Santos, que morreu em 1951 aos 78 anos de idade, como o seu antepassado mais antigo. Em 1937, seu sobrinho, Joaquim dos Santos, que vivia em uma fazenda vizinha, foi convidado a morar nas terras da comunidade pelo genro de Ludgério, José dos Santos. Ele veio com a esposa e os filhos. Os atuais moradores da comunidade são descendentes desses dois núcleos familiares, o de Ludgério e Joaquim. 



Fonte: Mamaterra


Em novembro de 2011, a comunidade de Preto Forro foi o segundo quilombo titulado pelo Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ). O depoimento de Elaine é de 2006, na época em que os quilombolas lutavam pela garantia do território. Podemos destacar três aspectos do texto: 1) a importância do reconhecimento como remanescente de quilombo; 2) o momento em que a comunidade recebeu pela primeira vez outros quilombolas do estado; 3) o enfrentamento do grileiro. 

Eu tive o privilégio de ter trabalhado como estagiária do projeto Etnodesenvolvimento Quilombola, uma realização de KOINONIA e do antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Além de Preto Forro, o projeto também incluía as comunidades de Alto da Serra (Rio Claro) e Ilha da Marambaia (Mangaratiba). 

O encontro dos dias 25/26 de novembro de 2006 foi realizado na Escola Agrícola Municipal Nilo Batista, localizada em Cabo Frio, próximo à comunidade. Foi muito bom relembrar esse momento. Segue o depoimento de Elaine, publicado no Informativo Territórios Negros - ano 6. n 26. nov/dez. 2006

Eliane dos Santos, da Associação de Remanescentes de Quilombo de Preto Forro (ARQUIFORRO), município de Cabo Frio (RJ) conta a seguir um pouco da trajetória e conquistas recentes da comunidade. 

Desde que nos reconhecemos como remanescentes de quilombo, muitas coisas mudaram, principalmente em relação às pessoas que vivem ao redor. Antes, éramos conhecidos apenas como uma família que morava no bairro de Angelim. Agora, depois que assumimos que somos quilombolas, somos mais respeitados. Quando vamos em algum lugar, muita gente pergunta: "Vocês são da comunidade quilombola de Preto Forro? Onde fica? Podemos conhecer?". Ou seja, muitas pessoas têm interesse em ir à comunidade. 

Além disso, passamos a ser convidados a participar de diversas atividades. Nas próximas semanas, por exemplo, o prefeito virá a Fazenda Campos Novos para um almoço, e nós já fomos convidados para participar. Queremos aproveitar para reivindicar algumas melhorias. No caso, pensamos primeiro em resolver o problema do acesso à comunidade, o caminho para chegar é muito difícil. 

Agora também fazemos parte do conselho municipal de agricultura. Isso foi muito bom para a comunidade. Antes, para arar a terra, tínhamos muita dificuldade para conseguir um trator. Hoje, quando vamos à reunião, solicitamos o trator e em dois ou três dias ele chega. Aí, a terra fica toda pronta para a gente plantar. Aliás, recebemos agora uma proposta muito boa: a prefeitura nos deu 10kg de feijão e disse que vai comprar de nós a produção, que vai ser levada para escolas e comunidades carentes. Estamos também plantando milho, que está muito bonito. 

[Sobre o evento de encerramento do projeto Etnodesenvolvimento Quilombola*, realizado nos dias 25 e 26 de novembro, em que a comunidade de Preto Forro foi anfitriã de outras nove comunidades quilombolas do Rio de Janeiro] 

Para nós, esse evento foi uma das melhores coisas que aconteceram, porque reuniu não só a nossa comunidade como várias outras. E isso fortalece todo mundo. Eu não acreditei quando vi certas pessoas ali presentes, como vereadores e outras autoridades conhecidas aqui de Cabo Frio. Quase ninguém aqui no município nos conhecia, mas a partir daquele dia...

Mas a melhor parte do evento foi quando o pessoal das outras comunidades veio ver onde moramos. Acho que eles devem ter sentido o mesmo que eu quando visitei outras comunidades: como tem terra que fica nas mãos de pessoas erradas. Foi muito bem ver aquele que se diz dono das terras [o grileiro] ficou aguardando do lado de fora, enquanto nossos convidados, quase 100 pessoas, estavam lá. Depois, ele quis saber quem eram essas pessoas. Bom, se ele fosse mesmo o dono, ele botaria todo mundo pra fora, né? Foi ótimo que ele tenha visto que a gente não está só. 


Daniela Yabeta
Historiadora - Pesquisadora Pós-Doc (UFF/FAPERJ)

domingo, 20 de agosto de 2017

Sobre a ADI 3239 contra a garantia dos territórios quilombolas no Brasil

No último dia 16 de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) adiou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI -3239) que trata da validade do Decreto 4887 responsável por regulamentar a demarcação de terras de comunidades quilombolas no território brasileiro.

Você sabe como foi que chegamos até esse julgamento? Bem, foi pensando nessa pergunta que escrevi o texto do nosso Caderno de Campo. Minha ideia aqui é trazer um resumo desse processo. Vamos ver se eu consigo:

1988 – Foi promulgado em 05 de outubro de 1988, através da nossa Constituição Federal, o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que determinou: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Vale lembrar que no mesmo ano, comemorávamos os 100 anos da abolição da escravidão no Brasil. Todo o movimento e debate sobre o tema foi fundamental para que a questão quilombola fosse incluída na nossa Carta Magna.

2001 - Em 10 de setembro de 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi promulgado o Decreto 3912, responsável por regulamentar “as disposições relativas aos processos administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas”. De acordo com seu Artigo 1º, a Fundação Cultural Palmares (FCP) foi encarregada de iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como de reconhecer, delimitar, demarcar, titular e garantir o registro imobiliário das terras por eles ocupadas. Para que um território fosse reconhecido e titulado como remanescente de quilombos era necessário: 1) comprovar que as terras eram ocupadas por quilombos em 1888; 2) comprovar que as terras continuavam ocupadas por seus descendentes em 05 de outubro de 1988, data da promulgação da nossa Constituição Federal. Sendo assim, tal declaração temporal restringiu enormemente os potenciais beneficiários do Artigo 68 (CF-1988).

2003 - Durante o primeiro ano do governo Lula, no dia 20 de novembro de 2003 – quando celebramos o Dia da Consciência Negra, foi promulgado o Decreto 4887, que revogou o Decreto 3912. Assim como o anterior, seu objetivo foi regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o Artigo 68 (CF-1988). Seu Artigo 2º considera “remanescente das comunidades dos quilombos grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. Além da questão da auto-atribuição, o Artigo 2º também determina que para a medição e demarcação das terras, devem ser levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos próprios quilombolas. Diferente do Decreto 3912, o Decreto 4887 encarregou a Fundação Cultural Palmares (FCP) de certificar as comunidades como remanescente de quilombo. Já o processo administrativo pela garantia do território ficou aos cuidados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Aqui, também vale a pena destacar que a promulgação de um novo decreto foi uma demanda dos movimentos de comunidades negras rurais que não se sentiam contemplados com o decreto anterior.

2004 – Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3239) foi impetrada pelo Partido da Frente Liberal (PFL, atual DEMOCRATAS). O documento questiona o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas, conforme estabelecido pelo Decreto 4887. De forma bem resumida, a inconstitucionalidade do Decreto 4887 é atribuída pelos seguintes motivos: 1) por conta da inexistência de uma lei prévia que confira validade ao decreto, que é ato normativo secundário; 2) são contrários a possibilidade de reconhecimento das pessoas como remanescentes de quilombo por auto-atribuição; 3) são contrários a demarcação das terras por indicação dos próprios interessados, ou seja, os quilombolas.

2012 – Em 18 de abril de 2012 ocorreu o primeiro julgamento da ADI 3239. Na ocasião, o então ministro Relator Cézar Peluso votou pela procedência da ação para declarar a inconstitucionalidade do Decreto 4887. Resumidamente, na interpretação do ministro, a inconstitucionalidade do Decreto 4887 ocorre pelos seguintes motivos: 1) viola o princípio da reserva legal, ou seja, somente uma lei poderia regulamentá-lo; 2) a desapropriação de terras públicas é vedada pelos Artigos 183 e 193 da Constituição Federal de 1988. Na ocasião, o ministro destacou o “crescimento dos conflitos agrários e o incitamento à revolta que a usurpação de direitos dele decorrente pode trazer”. Portanto, seu voto tem o “nobre pretexto de realizar justiça social”. O ministro também declarou que, para se inteirar mais sobre o debate em torno da questão quilombola no Brasil, leu o livro “Revolução Quilombola: guerra racial, confisco agrário e urbano, coletivismo”, escrito pelo jornalista Nelson Ramos (2007). O livro se refere aos quilombos contemporâneos como “um fantasma que parece ressurgir das cinzas”. Para o autor, o Decreto 4887 agitou muitas regiões do Brasil, o que provocou divisão e conflito social. Além disso, Ramos defende que o Decreto 4887 fere o direito de propriedade. Sendo assim, o presidente Lula desenterrou “mais um espectro para assombrar e acabar com a paz em nosso campo”. Como não é minha intensão aqui entrar numa discussão mais profunda sobre o que essa questão envolve, quero apenas destacar que a “agitação”, “divisão” e “conflito social” ao qual Ramos se refere, nada mais é do que a expansão de direitos à uma parcela da população que foi historicamente discriminada. Os quilombos contemporâneos não são fantasmas que ressurgiram das cinzas, eles sempre estiveram presentes lutando pelos seus direitos, porém eram invisibilizados e massacrados por aqueles que hoje enxergam neles uma grande ameaça à ordem estabelecida. A própria promulgação do Decreto 4887 foi uma conquista dos quilombolas. Infelizmente, Cézar Peluso mostrou que pensa diferente. Após seu voto, a ministra Rosa Weber pediu vista de processo, e o julgamento não foi concluído. 

2015 – O segundo julgamento ocorreu em 25 de março de 2015. Diferente de Cézar Peluso, a ministra Rosa Weber votou pela improcedência da ação. No entanto, ela defendeu o estabelecimento de um “marco temporal” para a titulação. O “marco temporal” traz de volta o Decreto 3912 promulgado por Fernando Henrique Cardoso em 2001, quando as comunidades remanescentes de quilombo tinham que provar a permanência no mesmo território na data de promulgação da Constituição Federal de 1988. Sendo assim, o voto da ministra não levou em consideração casos em que as comunidades foram expulsas de seus territórios violentamente. Após o voto de Rosa Weber, o julgamento foi novamente suspenso porque o ministro Dias Tóffoli pediu vista do processo.

2017 – Chegamos ao dia 16 de agosto, quando o STF adiou novamente o julgamento da ADI 3239 por conta da ausência do ministro Dias Tofolli devido a problemas de saúde. Uma nova data será agendada pela ministra Carmen Lúcia.

Apesar de não ter ocorrido o julgamento, a mobilização em torno da defesa pelos direitos quilombolas continua a todo vapor. Afinal de contas, #OBrasilÉQuilombola! Para você colaborar com essa corrente na luta por #NenhumQuilomboAMenos, assine a petição aqui

Espero ter ajudado com o resumo. 



Daniela Yabeta

Historiadora – Pesquisadora Pós-DOC História UFF (FAPERJ)

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

400 anos de São Pedro da Aldeia (RJ) e o quilombo de Caveira




Não sei se vocês sabem, mas passei toda a minha infância e adolescência em São Pedro da Aldeia, cidade localizada na Região dos Lagos, onde até hoje vive parte da minha família. 

Aproveitei muito a praia do Sudoeste, meu tio chegou a ter um quiosque por lá chamado “Pôr do Sol”. Curti a Rua da Parra, o São Pedro Esporte Clube e a antiga pizzaria do Padre.

Ao longo de mais de vinte anos frequentando São Pedro nas férias escolares, nunca ouvi falar de comunidade quilombola. A história que me contavam era basicamente da presença dos jesuítas na cidade durante o período colonial e da visita da princesa Isabel em 1868, quando ficou hospedada na Casa dos Azulejos.


Em 1993, o Bloco do Abridor, um dos mais tradicionais do carnaval aldeense, fez uma homenagem a Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985), o “homem que criou a Casa da Flor”. Na época, eu lembro de ter perguntando quem era e onde ficava a tal casa, mas me explicaram como se fosse uma coisa de menor importância. O tempo passou, as férias escolares acabaram e eu nunca conheci o local.


Porém, ao entrar na vida adulta e deixar as férias em São Pedro, quando ingressei como estagiária em KOINONIA no ano de 2005 e tive a oportunidade de conhecer o movimento quilombola do Rio de Janeiro, descobri que na cidade havia um quilombo chamado Caveira, certificado pela Fundação Cultural Palmares desde 1999. Ao longo desses anos, visitei São Pedro não mais para ver minha família, mas para conhecer os quilombolas de Caveira e principalmente, a escola quilombola Rosa Geralda da Silveira, inaugurada em 2013, a primeira (e única) escola quilombola do estado do Rio de Janeiro construída com recursos do programa Brasil Quilombola.

Foto Daniela Yabeta

Recentemente a equipe do projeto “Linguagem Pública para Comunidades Quilombolas” me enviou o livreto sobre o quilombo de Caveira. Trata-se de uma antiga demanda das comunidades de todo o Brasil que é a transformação da linguagem técnica contida nos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID) em algo acessível aos quilombos. Para ter acesso ao material, basta clicar aqui.

Sobre a história de Caveira, dizem o seguinte:

“A comunidade descende de negros que já ocupavam essa área mesmo antes da abolição da escravatura, trabalhando na lavoura e na criação de pequenos animais. Os laços de parentesco entre os moradores, bem como essas práticas de cultivo e criação, foram fundamentais para a sua união na luta contra tentativas de expulsão por parte de supostos donos das terras que chegaram à região em diferentes momentos de sua história.

Isto aqui era uma fazenda e o nome dela era Caveira, afirma o Sr. Glicério, da família Santos, que nela nasceu em 1927. Caveira fazia parte de uma fazenda enorme, chamada Campos Novos, dos jesuítas. Corresponde hoje à área que abrange todo o município de Búzios e parte de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia. Caveira era o lugar onde as carcaças de gado morto eram deixadas – e os esqueletos dos animais ficavam expostos -, bem como o local onde eram enterrados os corpos de escravizados.

Guardar o nome Caveira é uma forma de lembrar a violência e a crueldade do tráfico negreiro e, ao mesmo tempo, apontar para os novos tempos de resistência das comunidades quilombolas que lá se formaram. A história da escravidão na Região dos Lagos, e em todo o litoral fluminense, se confunde com a história da Fazenda Campos Novos e suas subdivisões ao longo do tempo, na época em que funcionava como centro distribuidor de escravizados africanos desembarcados em Búzios. Os escravizados eram levados até a sede da Fazenda Campos Novos e ali passavam por uma triagem. Alguns eram encaminhados às fazendas nucleares, onde passavam por uma chamada “engorda”, quando se recuperavam da viagem no tumbeiro. Nos casos mais dramáticos, em que chegavam mortos ou quase mortos, eram enviados à Fazenda da Caveira, onde pilhas de cadáveres eram enterradas, sendo esta a origem do nome da fazenda e hoje Quilombo da Caveira”.

Vale a pena destacar que esse tráfico negreiro era totalmente ilegal. Em 07 de novembro de 1831, o Brasil recém-independente, proibiu o tráfico de africanos escravizados. Através do seu Artigo 1º, a lei determinava que todos os africanos desembarcados no território brasileiro como escravizados deveriam ser livres. Mas na prática, isso não ocorreu e a ilegalidade prevaleceu. Os desembarques em Búzios são a prova disso.

Esse ano a cidade de São Pedro da Aldeia completou 400 anos. Não acompanhei as festividades, mas fico me perguntando: Qual história foi exaltada?

A história da Casa dos Azulejos e de sua imponente arquitetura colonial que abrigou a princesa redentora, ou a história da Casa da Flor, uma obra prima da arquitetura espontânea construída por um homem negro e pobre que recolhia materiais por onde andava: cacos de azulejo, cerâmica, louça até então considerados imprestáveis?

A história dos indígenas que foram catequizados e tirados de seu território original no Espirito Santo e trazidos para o que hoje corresponde a cidade de São Pedro da Aldeia ou a história da harmonia entre esses mesmos indígenas e os jesuítas?

A história da memória da brutalidade do tráfico ilegal de africanos escravizados para o Brasil contada pelo quilombo de Caveira ou a história da extinta Rede Ferroviária Federal de estilo art decó?

Encerro com a escritora nigeriana Chimamanda Adichie que nos traz os “perigos da história única”: “Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar”, pondera. “Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida”.

O que quero destacar aqui é que povos, assim como indivíduos, são complexos e formados por diferentes aspectos. Nossa tarefa é de dar conta e perceber essa diversidade. Digo isso porque no site da prefeitura de São Pedro da Aldeia, a experiência dos indígenas e dos africanos escravizados são apenas citados como detalhes de uma história eminentemente branca. São 400 anos, mas ainda dá tempo de mudar.

Para quem quer saber um pouco mais sobre a escola, escrevi dois textos. O primeiro, em parceria com o Flávio Gomes (UFRJ), foi publicado na Revista Ciência Hoje das Crianças: Na escola quilombola. O segundo foi publicado no livro História Oral e Comunidades, organizado por Hebe Mattos (UFF): A escola quilombola de Caveira e outros casos: notas de pesquisa sobre Educação e comunidades negras rurais no Rio de Janeiro (2013-2015). 


Daniela Yabeta
Historiadora – Pós-Doc (FAPERJ) História UFF

Editora da Revista do Observatório Quilombola

Encontro de Comunidades Quilombolas do Rio de Janeiro

Entre os dias 10-12 de agosto, estive em mais um Encontro das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro. Este foi o quinto encont...