quarta-feira, 31 de maio de 2017

Carta do 5º Encontro das Comunidades Quilombolas - CONAQ

Entre os dias 22/25 de maio, na cidade de Belém (PA), quilombolas de todo o Brasil se reuniram para falar de suas lutas, conquistas e desafios. Diante da importância desse evento, o Caderno de Campo dessa semana publica a "Carta do 5º Encontro das Comunidades Quilombolas - CONAQ"




Nós, quilombolas participantes do 5º Encontro da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas do Brasil - CONAQ, reunidos na cidade de Belém do Pará entre os dias 22 a 25 de maio de 2017, vindos do Pará, Bahia, Maranhão, Alagoas, Pernambuco, Amapá, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Piauí, Paraíba, Tocantins e Goiás, vimos por meio desta carta expressar três sentimentos. 


O primeiro deles é de alegria em poder nos encontrar pela 5ª vez em nível nacional. Os encontros da CONAQ aconteceram nas seguintes cidades e anos: I Encontro Nacional aconteceu em Brasília/ 1995; II Encontro Nacional em Salvador/ 2000; III Encontro Nacional em Recife/2003; IV Encontro Nacional na cidade do Rio de Janeiro/ 2011; e V Encontro Nacional/Belém, 2017 com o tema: Terra titulada, Liberdade Conquistada e Nenhum Direito a Menos. Do I Encontro Nacional da CONAQ em 1995 até o V, aconteceram sucessivos encontros de formação politica da coordenação nacional, das coordenações estaduais, seminários nacionais, regionais, assembleias, fóruns, debates, participações de quilombolas em diversos espaços de construção de políticas locais, regionais e nacional e neles muitas construções e enfrentamentos do racismo institucional nas suas diversas faces se fez em defesa dos quilombolas e dos territórios quilombolas. Os desafios que se apresentaram foram enfrentados com muita determinação pela CONAQ. Nunca foi fácil qualquer das ações que envolvam os quilombolas e os negros e negras em geral. 

Portanto, resistimos por nenhum direito a menos! 

O segundo sentimento é o de que estamos dando mais um passo ruma a consolidação de um movimento social mais dinâmico, altivo e plural na América Latina. Apesar dos mais de 300 anos de escravidão, ainda hoje, presenciamos situações análogas ao trabalho escravo, mantivemo-nos em nossos territórios, cuidamos deles como espaços sagrados, pois é deles que depende nossa existência, e, se em 1995 tínhamos o reconhecimento de 412 quilombos no Brasil, hoje somos mais de 5.000 (cinco mil) quilombos em todo Brasil. Portanto, somos uma força importante e incapaz de ser ignorada pelo Estado brasileiro que buscou e busca a todo custo nos invisibilizar e nos oprimir da hora que nos arrancaram de nossas terras ancestrais, na África. 

Portanto, resistimos por nenhum direito a menos! 

O terceiro sentimento é de muita preocupação com o momento em que estamos vivendo no Brasil. O país passa por momento de instabilidade causado pelas forças conservadoras formada por uma elite branca e usurpadora das riquezas brasileiras compostas de banqueiros, fazendeiros, empresários, pelo legislativo e setores do judiciário, entre outros, que não aceitaram a vontade do povo brasileiro que elegeu sucessivamente 4 mandatos das forças de esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores. Esses governos foram atacados fortemente por terem tentado, se não diminuir as desigualdades entre negros e brancos, pelo menos esforços significativos para incluir os mais pobres de nosso país em programas sociais, elevando assim a qualidade de vida dos "chamados mais pobres", sendo esses os negros, saindo dos quadros de miserabilidade e passando a ter garantido direitos básicos, como, por exemplo, o direito a alimentação. Não foi fácil, porém, os resultados são visíveis, entre eles se destacam as políticas de inclusão social e as políticas de ações afirmativas que levaram muitos quilombolas a direitos nunca antes acessado. Porém, tudo isso encontra-se ameaçado por conta do Golpe Parlamentar imposto a primeira mulher eleita a presidenta do país, demonstrando uma das faces do machismo mais violenta já vista na história dos 500 anos!

Portanto, resistimos por nenhum direito a menos! 

O governo formado a partido de um Golpe e sem legitimidade do povo brasileiro, com anuência do parlamento, do judiciário e da imprensa do Brasil trabalham para desconstruir todos os espaços que atuam na promoção, na elaboração e na execução de políticas públicas para as comunidades quilombolas, os povos indígenas e os outros povos tradicionais, a exemplo, da destituição do Ministério do Desenvolvimento Agrário, inclusive acabando com a ouvidoria agrária nacional que era um espaço de diálogo entre os governos e os trabalhadores e trabalhadoras do campo e enfraquecendo o INCRA em suas atribuições, principalmente as ações de regularização fundiária das comunidades quilombolas com a retirada de quase todo o seu orçamento e contingenciando o restante; a descaracterização do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, que deixou de ser uma instância de articulação, elaboração e execução de politicas para as mulheres, negros e negras, quilombolas e povos e comunidades tradicionais e de direitos humanos; enfraquecimento e militarização da FUNAI; enfraquecimento das ações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome - MDS, ministério esse que grande parte de suas ações eram voltadas para a inclusão social; deslegitimação da Fundação Cultural Palmares, nas suas principais atribuições, em especial nos processos de licenciamento ambiental envolvendo comunidades quilombolas. 

Portanto, resistimos por nenhum direito a menos! 

Outro atentado do governo ilegítimo é a destruição, descaracterização, esvaziamento dos conselhos, Comissões, Fóruns e Grupos de Trabalho, a exemplo do Conselho de Promoção de Igualdade Racial - CNPIR, Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais - CNPCT, Conselho Nacional de Política Indigenista - CNPI e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável - CONDRAF. 

Ressalta-se que todos os espaços, tanto de participação social como os de formulação e execução de políticas específicas, foram conquistas dos movimentos sociais que muito lutaram para romper as barreiras impostas pelo racismo institucional, pelo colonialismo e pela elite detentora do poder político e econômico do Estado brasileiro. 

Portanto, resistimos por nenhum direito a menos! 

O Golpe trouxe uma crise política nas instituições públicas e muita tensão, Nunca se matou tantos quilombolas, indígenas, trabalhadores e trabalhadoras do campo e na cidade com o consentimento, seja pela ação direta ou pela negligência do próprio Estado brasileiro, como nesse ano que estamos regidos pelo governo ilegítimo. 

Portanto, resistimos por nenhum direito a menos! 

Diante do exposto, a plenária do V Encontro Nacional da CONAQ, repudia e condena: 

A CONAQ repudia e condena toda e qualquer forma de manifestação do racismo por entender que é destas manifestações que nascem as desigualdades e as violências sofridas pela população negra, povos indígenas e demais povos e comunidades tradicionais; 

A CONAQ repudia e condena todo e qualquer governo em que qualquer instância formada a partir do rompimento com o processo democrático; 

Repudia e condena todos os atos de violência de gênero ou qualquer outra natureza, no campo e na cidade; 

Repudia e condena os atos arbitrários do Governo Federal na data de 24 de maio na cidade de Brasília, com manifestantes em defesa da democracia, usando a força para massacrar e violentar manifestantes; e a violência promovida pelo Governo do Pará por meio de seus aparelhos policiais que tem matado trabalhadores e trabalhadoras como o caso que ocorreu na Chacina em Pau d´Arco, ontem 24 de maio de 2017, deixando 10 trabalhadores rurais mortos; 

Repudia e condena a criminalização dos movimentos sociais e suas lideranças por setores do judiciário, legislativo e executivo; 

Repudia e condena a postura e as ações do parlamento brasileiro sob a liderança da bancada ruralista que trabalha diuturnamente para desconstruir a Constituição brasileira e a legislação que garante os direitos territoriais de quilombolas, indígenas, bem como os meios de garantias da preservação e sustentabilidade ambiental. Destacamos nesse ataque racista a realização da Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI (FUNAI-INCRA), que busca criminalizar as lideranças indígenas e quilombolas, servidores públicos, apoiadores das lutas sociais. Além disso, a CPI propõe a extinção do INCRA e da FUNAI, a revogação do Decreto 4887/2003 e propõe uma nova regulamentação para o Artigo 68 do ADCT para não reconhecer a territorialidade coletiva, a auto definição e impõe novamente, de forma arbitrária, o marco temporal, que não reconhece a história, o esbulho e as violências sofridas por esses povos; 

Repudia e condena todos os estados da federação que se omitem na garantia dos direitos e na execução de políticas para as comunidades quilombolas, inclusive deixando de regularizar terras públicas em seu domínio e permitindo a ampliação da violência contra quilombolas, indígenas, outros povos e comunidades tradicionais e trabalhadoras e trabalhadores rurais; 

Portanto, resistimos por nenhum direito a menos! 

A plenária do V Encontro Nacional da CONAQ, afirma e delibera que: 

Continuará na luta pela garantia da autonomia dos territórios quilombolas e por nenhum direito a menos;

Continuará lutando, de forma intransigente, pela regularização fundiária dos territórios quilombolas, estejam eles sobrepostos por terras públicas federais e estaduais, sejam terras em posse de particulares; 

Pela sustentabilidade das comunidades quilombolas; 

Pela garantia e fortalecimento da emancipação das mulheres quilombolas; 

Pela autonomia, inserção e participação da juventude quilombola nos espaços de formação política, tais como: conselhos, fóruns e demais espaços de representação, que tenham como objetivo a promoção de direitos e elaboração de políticas públicas; 

Investirá na formação política da juventude e das mulheres quilombolas; 

Lutar para que se reestabeleça o processo democrático no Brasil e as estruturas de Estado de elaboração e execução das políticas de promoção de igualdade racial desmantelada e destruída pelo governo ilegítimo oriundo do Golpe; 

Terra Titulada, Liberdade Conquistada e Nenhum Direito a Menos! 


sexta-feira, 26 de maio de 2017

Dona Dandinha parte II - a entrega da cadeira de rodas no quilombo Pitanga dos Palmares (BA)

Hoje vamos contar mais um capítulo da história de Maria Cândida dos Santos, conhecida como Dona Dandinha - a matriarca quilombola de Pitanga dos Palmares. Vocês conheceram a história dela no texto publicado por Daniela Yabeta no último dia 03 de abril. Para relembrar, basta clicar aqui.

Dona Dandinha foi diagnosticada com DPOC – Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica, o que torna sua respiração muito difícil. Além do oxigênio, fornecido pelo SUS – Sistema Único de Saúde, ela também necessitava de uma cadeira de rodas para melhorar sua qualidade de vida.

Ficamos sabendo da necessidade da cadeira de rodas no mês de março, através de uma mensagem do Flávio Pacífico, presidente da Associação Quilombola de Pitanga dos Palmares. A partir daí, iniciamos a campanha através de uma vaquinha online. Foi um sucesso!

No dia 18 de maio, uma quinta-feira chuvosa em Salvador, sai do bairro da Federação, onde moro, com a missão de concretizar uma ação coletiva, que contou a participação de colaboradores de diversas localidades. 

A caravana foi composta por três pessoas: eu, a jornalista Ivana Flores (que aceitou a missão de fazer as imagens) e Carlos, nosso uberista de fé. Seguimos rumo a comunidade quilombola de Pitanga do Palmares, localizada em Simões Filho, região metropolitana de Salvador, para entregarmos a cadeira de rodas. 

Embora o quilombo seja relativamente próximo a Salvador, eu não conhecia nada do lugar, então, fomos de coração aberto para tudo. Durante a viagem de pouco mais de uma hora, falamos sobre a urbanização, os desafios de morar nas proximidades de rodovias, conjecturamos sobre como seria a configuração comunitária, e principalmente, em como seria a reação de Dona Dandinha com a entrega de seu presente.

Foi então que descobri que Pitanga dos Palmares é cortada por uma rodovia, que como todos nós sabemos ou podemos imaginar, produz um impacto muito maior do que é visível. Sempre que isso acontece, é fundamental reforçar as conexões históricas, culturais e sociais que mantem a identidade coletiva do grupo. 

Além da rodovia, encontramos algo que, nestes meus quase 15 anos de andanças por comunidades quilombolas, nunca encontrei: um presídio que foi construindo em 2002 nas terras da comunidade.

Como isso é possível? Que tipo de governo constrói um presídio numa área coletiva de preservação de modo de vida diferenciado? Quais impactos isso leva a vida dos quilombolas? E das mulheres? Mil questões passaram pela minha cabeça.

E aí, chegamos na Capela de São Gonçalo, casinhas coloridas e muitas árvores! Conhecemos o Flávio Pacífico e ele nos levou até uma linda casinha, onde na varanda, sentada numa cadeirinha estava ela, Dona Dandinha, que nos recebeu com um sorriso aberto! 

Casa Dona Dandinha - Foto: Ivana Flores

Foi difícil segurar e emoção de ouvir: “Oi, minha filha! ”. Com a voz falhada, a matriarca da comunidade estava à espera do carinho que veio de longe. Me senti com muitos braços, pois eu a estava abraçando por todas as pessoas que de longe, se solidarizaram com a situação de vulnerabilidade dela.

Ana Gualberto e Dona Dandinha - Foto: Ivana Flores

Mas vamos a outras coisas que rapidamente soubemos durante a visita à comunidade e através de nossa conversa com o Flávio.

Existe a casa do samba! Que é o memorial da cultura da comunidade. Lá é onde guardam os instrumentos do samba de viola, do qual ele hoje é o violeiro. Guardam também o Boi do Bumba Meu Boi.

Memorial de Cultura - Foto: Ivana Flores


A comunidade é devota de São Gonçalo e adivinhem quem é a principal devota? Ela mesma: Dona Dandinha! Mesmo doente ele ainda pede para que seus familiares e cuidadores ascendam velas para São Gonçalo, São Jorge e outros santos de sua devoção.

Guardam também o presépio e as palhas de são gonçalinho que é uma planta de grande prestígio dentro dos terreiros de candomblé de nação Ketu, pois está ligado ao orixá Oxossi. Esta planta é usada em uma festividade chamada “Queima da palhinha” que acontece de dezembro a janeiro.

Flávio Pacífico e o presépio - Foto: Ivana Flores

Na comunidade também existe (e resiste) um Ilê Axé, mesmo com a chegada de muitas igrejas. Segundo Flavio, hoje são 14 igrejas evangélicas diretamente em contato com a comunidade.

Falamos também sobre as lutas do quilombo e sobre as relações com o governo estadual da Bahia, que tem apoiado algumas ações, principalmente no que se refere a produção agrícola e comercialização. Quanto ao governo municipal, de acordo com os quilombolas, ignoram a existência da comunidade.

Foi uma visita rápida que deixou aquele gostinho de quero mais! E claro, assim que eu souber mais coisas sobre a comunidade, vou compartilhar com vocês.

Por hoje gostaria de registrar o momento de amor que vivenciei através da ação de muitas pessoas. Sintam os beijos e o sorriso de Dona Dandinha, além de meu sentimento de esperança e gratidão!!!!


Ana Gualberto
Historiadora - Metranda Cultura e Sociedade UFBA 
Editora do Observatório Quilombola



sexta-feira, 19 de maio de 2017

Revisitando o Informativo Territórios Negros – O quilombo de Conceição do Macacoari (AP) e a suspensão das titulações quilombolas

Para o caderno de campo dessa semana, resolvi revisitar o Informativo Territórios Negros de KOINONIA e trazer o segundo texto que publiquei na coluna “Um Território”, no início do ano de 2006.

Eu já expliquei que, naquela época, não era costume assinar nossos textos. Os créditos vinham apenas no final da revista, organizado de forma geral. Portanto, se vocês procurarem , não encontrarão meu nome.

Nos últimos meses estou tentando revisar esse material e disponibilizá-lo aqui no blog e também no Atlas Observatório Quilombola. Já fiz isso com o texto sobre a comunidade remanescente de quilombo de Barro Preto, localizada no município de Santa Maria do Itabira (MG). Agora chegou a vez do quilombo de Conceição de Macacoari, localizado a 100km de distância do centro da cidade de Macapá (AP). 

A comunidade de Conceição do Macacori foi certificada pela Fundação Cultural Palmares em 2005 - processo 01420.002182/2005-98, e titulada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária em janeiro de 2006 - processo 54350.000393/2005-23.


Conceição do Macacoari tem esse nome por dois motivos. O primeiro é em homenagem a Nossa Senhora da Conceição, padroeira da comunidade, festejada em 08 de dezembro. O segundo é por conta da grande quantidade de macacos que habitam a região.


De acordo com o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) elaborado pelo Incra, os antigos moradores contam que a história da ocupação do território remete ao século 19.

Foi nessa época que o liberto Manoel Neri, conhecido como Pai Mané, foi levado de Mazagão Velho (interior do Amapá) para combater na Guerra do Paraguai (1864-1870).

Acontece que durante o caminho, ele conseguiu fugir até instalar-se definitivamente na região que hoje corresponde ao quilombo.

Mais tarde, já no início do século XX, as terras de Conceição do Macacoari foram vendidas para o pecuarista negro Estevão Picanço, cujos descendentes continuam vivendo no mesmo território.


A decisão da comunidade de buscar a certificação e a titulação do território como remanescente de quilombo foi intensificada quando agricultores da região, passaram a pressionar o grupo para que eles vendessem suas terras e deixassem a localidade.

Diante da ameaça, os moradores de Conceição do Macacoari resgataram a história de constituição da comunidade relacionada a experiência da escravidão e do pós-abolição e se organizaram em torno da Associação de Moradores da Comunidade Quilombola de Conceição do Macacoari (AMCQCM).

O processo da preparação da documentação e a organização da associação durou cerca de um ano. Na época os quilombolas contaram com o apoio da (hoje extinta) Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

Depois disso, procuraram a Superintendência Regional do Incra no Amapá, onde foram orientados sobre os procedimentos para a titulação do território.

Atualmente, a realidade dos processos de titulação sofreu um impacto muito grande. Pela primeira vez, desde 1995, o governo federal suspendeu as titulações quilombolas.

A suspensão será mantida até que o Superior Tribunal Federal (STF) conclua o julgamento da ADI 3239 que considera inconstitucional do Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003, responsável por regulamentar o procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos de que trata o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988.

Dez anos depois que escrevi o texto sobre Conceição do Macacoari, jamais poderia imaginar que a possibilidade da garantia do território quilombola fosse se transformar na incerteza de mais de 1.500 comunidades que foram diretamente afetadas por essa decisão. 

Seguimos na luta!

Daniela Yabeta
Historiadora - Pesquisador Pós-Doc (FAPERJ - UFF)
Editora da Revista do Observatório Quilombola 


quinta-feira, 11 de maio de 2017

Entre o carnaval de 1988 e o 13 de maio de 2017

Sempre que vai chegando o dia 13 de maio, minha memória viaja até 1988, ano do centenário da abolição da escravidão! Um período memorável em vários sentidos. Entretanto, hoje escolhi trazer para nosso Caderno de Campo, lembranças do carnaval daquele ano. Lembrança da festa!

Desfile 1988 – Salgueiro/ Ouro de Tolo

Fevereiro de 1988. Eu tinha 11 anos e, como sempre, assisti todo o desfile das escolas de samba do carnaval carioca. Ficava acordada até de madrugada em frente a TV. Foi incrível ver na avenida tantas referências ao povo preto. Tantas coisas lindas!

Enquanto eu assistia impactada aos desfiles, minha mãe falava sem parar da luta pela nossa constituição e de como aquele ano era importante para todo o povo brasileiro. Esperávamos por um momento de passar a limpo o racismo instituído em nossa sociedade. A memória da alegria e da esperança daquele tempo, divide espaço com a realidade enfrentada hoje, onde muitos daqueles nossos sonhos continuam ainda no plano dos sonhos...

Quando os desfiles terminaram eu já havia escolhido a minha preferida. Era tão óbvio na minha cabeça: tinha que ser a Mangueira! Vale destacar que na época eu era imperiana e hoje sou portelense. Sendo assim, foi uma escolha “técnica”. 

Desfile 1988 – Mangueira / Ouro de Tolo

Mas por que tinha que ser a Mangueira? Afinal de contas, em 1988 a Vila Isabel foi a grande campeã com o clássico “Kizomba, a festa da raça”. 

Desfile 1988 – Vila Isabel / Ouro de Tolo

Bem, o resultado do carnaval de 1988 já foi muito debatido pelo clã Gualberto, minha família. Enquanto eles defendem a vitória da Vila Isabel eu argumento em defesa da Mangueira da seguinte forma: 1) O carnaval da Mangueira foi perfeito, com a típica animação verde-e-rosa; 2) O samba enredo da Mangueira “100 anos de liberdade, realidade ou ilusão” falava do ontem e do hoje, da realidade do povo negro, coloca em dúvida o conceito de abolição; 3) O samba também traz elementos do sonho de superação do racismo e da contribuição do negro na sociedade.


Sobre a “festa” de Vila Isabel, eu não me sentia incluída. Até hoje precisamos convencer as pessoas, em diversos espaços, que o racismo existe e continua sendo estrutural na sociedade. Precisamos debater o fato de não comemorar o 13 de maio, questionar o conceito de abolição da escravização do povo negro. Tudo que estava lá, dito no samba da Mangueira!


Maio de 2017. Estamos diariamente perdendo direitos que foram duramente conquistados por conta de um governo ilegítimo que não respeita a Constituição de 1988 e que ignora o povo. Vivemos a ameaça da reforma da previdência, que pretende colocar a idade mínima de 65 anos para homens e mulheres se aposentarem e que aumenta o prazo mínimo de contribuição de 15 para 25 anos. Popularmente ela é chamada de “a volta da Lei dos Sexagenários”.


Também vivemos a ameaça do Projeto de Lei de autoria do Deputado Nilson Leitão (PSDB/MT) que propõe instituir “novas” normas reguladoras do trabalho rural: aumento da jornada de trabalho para 12horas, pagamento dos trabalhadores feitos com remuneração de qualquer espécie, podendo oferecer moradia, alimentação, parte da produção ou concessão de terras em vez de salário. Essa é a PL 6442/2016, popularmente conhecida como “a volta da escravidão”.


Há alguns anos que uso a letra do samba enredo da Mangueira de 1988 para debater com as comunidades negras rurais (e comunidades de terreiro) sobre a abolição e a privação de direitos. É parte de minha metodologia de reflexão e sensibilização.

Então minha gente, mais do que pensar no 13 de maio é preciso pensar no dia 14, 15 e 16...Onde os ex-escravizados, agora cidadãos livres (ou como diz Flávio Gomes e Olívia Cunha “Quase Cidadãos”) encararam a realidade em busca de direitos. Direito por um salário digno, por comida, por terra.

Apesar das dificuldades, precisamos lembrar que somos sementes e temos raízes. O povo preto vive e resiste!!!!



Ana Gualberto
Historiadora, Mestranda em Cultura e Sociedade - UFBA
Assessora de KOINONIA

terça-feira, 2 de maio de 2017

Cuidando para cuidar: meio ambiente e religiosidade de matriz africana.

Hoje resolvi trazer para nosso Caderno de Campo uma reflexão sobre algo fundamental para minha religiosidade: o cuidado com o meio ambiente.

Pensar as religiões de matriz africana é pensar o cuidado. Cuidado com os seres humanos e com a natureza, já que nossa religião é fundamentada no culto aos orixás, que são parte da natureza.

Cada orixá representa um elemento, uma parte do todo que compõe o mundo. Eles vivem dentro de nós, porque afinal de contas, somos parte desse mundo. Mais do que ser parte, somos dependentes dos elementos da natureza para cultuar nossos orixás e viver em harmonia. 

Para compreendermos melhor essa dimensão, trouxe um oriki do orixá Ossain, o detentor do saber de todas as folhas.

Imagem: Felipe Caprini

Ossain, filho de Nanã e irmão de Oxumarê, Euá e Obaluaê, era o senhor das folhas, da ciência e das ervas, o orixá que conhece o segredo da cura e dos mistérios da vida. Todos os orixás recorriam a Ossain para curar qualquer moléstia, qualquer mal do corpo. Todos dependiam de Ossain na luta contra a doença. Todos iam à casa de Ossain oferecer seus sacrifícios. Em troca Ossain lhes dava preparos mágicos: banhos, chás, infusões, pomadas, abo, beberagens. O grande senhor das folhas curava as dores, as feridas, os sangramentos; as disenterias, os inchaços, as fraturas; curava as pestes, febres, órgãos corrompidos; limpava a pele purulenta e o sangue pisado; livrava o corpo de todos os males. Um dia Xangô, senhor da justiça, julgou que todos os outros orixás deveriam compartilhar o poder de Ossain, conhecendo o segredo das ervas e dom da cura. Ele então, sentenciou que Ossain dividisse suas folhas com os outros. Porém, Ossain se negou a cumprir as ordens de Xangô. Não satisfeito, Xangô ordenou que Iansã soltasse o vento e trouxesse ao seu palácio todas as folhas das matas de Ossain para que fossem distribuídas aos orixás. Iansã fez o que Xangô determinara. Gerou um furacão que derrubou as folhas das plantas e as arrastou pelo ar em direção até seu palácio. Ossain percebeu o que estava acontecendo e gritou: “Euê uassá!”: as folhas funcionam! Ele ordenou que as folhas que voltassem para suas matas e as folhas prontamente obedeceram suas ordens. No entanto, aquelas que já estavam em poder de Xangô perderam o axé, perderam o poder de cura. Xangô, um orixá justo, admitiu a vitória de Ossain e entendeu que o poder das folhas devia ser exclusivamente dele e que assim deveria permanecer através dos séculos. Apesar de tudo, Ossain deu uma folha para cada orixá, deu uma euê para cada um deles. Cada folha com seus axés e seus ofós, que são as cantigas de encantamento, sem as quais as folhas não funcionam. Ossain distribuiu as folhas para os orixás para que eles não mais o invejassem. Eles também podiam realizar proezas com as ervas, mas os segredos mais profundos ele guardou para si. Ossain não conta seus segredos para ninguém, ele nem mesmo fala, se comunica através de seu criado Aroni. Os orixás ficaram gratos a Ossain e sempre o reverenciam quando usam as folhas. (Para saber mais sobre esse e outros orikis, recomendo o livro “Mitologia dos Orixás” de Reginaldo Prandi)


Oriki, que é uma das formas como aprendemos sobre os orixás e sobre a vida. Destaco em especial, três pontos para reflexão presentes nesse oriki de Ossain: 1) Sobre os orixás e seus elementos: Iansã utiliza seu poder sobre o vento para levar até Xangô, senhor da justiça e também do fogo, as folhas que são de domínio de Ossain; 2) Sobre a necessidade de cooperação e respeito: Xangô compreende ser direito de Ossain o domínio sobre as folhas e a cura através delas; 3) Sobre benevolência: mesmo provando que poderia acumular para si todo o saber, Ossain decide compartilhar com os outros parte de seu conhecimento.

No candomblé compreendemos que nada pode ser realizado sozinho, precisamos uns dos outros, precisamos de pessoas ao nosso redor, precisamos da natureza para o mais elementar ritual. Recriamos a organização familiar dentro de nossos terreiros, passamos a ter mães, pais, irmãos, tias, tios e demais entes. Ganhamos uma família que ensina, corrige quando necessário e compartilha. 

Imagem: Carybé

Ao contemplarmos a natureza vemos uma das formas de nossos orixás. Quando entramos no mar, saudamos Yemanjá. Quando entramos num rio ou numa cachoeira, saudamos Oxum - dona das águas doces. Nas matas, saudamos Oxossi. Ao usarmos as folhas, saudamos Ossain. Sendo assim, em nossa perspectiva religiosa, defender o meio ambiente é defender nossa religião.

Acontece que, com o advento da modernidade, torna-se necessário também para as comunidades de terreiros, discutir sobre o efeito de nossas ações com relações aos impactos ambientais.

Mesmo aprendendo com nossos antepassados sobre como utilizar a natureza de forma harmoniosa, muitas pessoas não se preocupam em preservá-la. Desta forma, esse “não cuidar” acabou servindo (em alguns momentos) como justificativa para ações de intolerância religiosa, culpando os religiosos de matriz africana de depredação ambiental e outros crimes contra o meio ambiente. Para mais informações sobre a temática sugiro o Dossiê Intolerância Religiosa de KOINONIA.

Foi necessária uma reação das casas e em alguns casos, ações de reeducação ambiental e de diálogo sobre esta questão. Muitos desses espaços tem contribuído de forma constante nos processos de reflexão, mitigação de impactos locais, mobilização e formação popular sobre o tema ambiental. Trouxe aqui alguns exemplos:

Aderbal Ashogun - ashogum (ogam responsável pelos sacrifícfios) do Ilê Omiojuaro de Mãe Beata de Yemonjá, em parceria com a Fundação Cultural Palmares produziram a cartilha Oku Abo, uma ferramenta educativa criada pelo projeto de educação ambiental para religiões afro-brasileiras. O objetivo da cartilha é de resgatar o saber tradicional das religiões afro-brasileiras e promover a preservação do meio ambiente.


Iyá Jaciara Ribeiro - Iyalorixá do Abassá de Ogum localizado em Itapuã, Salvador, atua em sua localidade com ações de educação ambiental e recolhendo materiais não biodegradáveis na Lagoa do Abaeté. Alem de desenvolver diversas ações em combata a intolerância religiosa.

KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço atua desde sua fundação, em 1994, junto a comunidades de terreiros de candomblé em Salvador e região metropolitana. Durante estes anos de trabalho, um dos temas de reflexão foram as questões ambientais seus impactos junto as comunidades, formas de reação e enfrentamentos, alternativas e ações realizadas pelas comunidades. Em 2008 KOINONIA realizou o Seminário Público de Comunidades Negras Rurais em Salvador, onde reuniu representantes de comunidades negras tradicionais (terreiros e quilombos) para refletir sobre identidade e desenvolvimento. A temática ambiental teve um grande espaço ocupado neste debate que teve como fruto o livro “Identidade e Desenvolvimento”. Na ocasião, também produzimos o vídeo “Meio Ambiente”, vale a pena dar uma conferida. 


Nas últimas décadas as religiões de matriz africana têm tentado ampliar seus espaços de atuação e discussão, um deles é o debate acadêmico.

Sobre a temática do meio ambiente, destaco as recentes pesquisas de: 1) Mariana Vitor Renou (Mestrado em Antropologia – Museu Nacional/ UFRJ, 2011) Oferenda e lixo religioso: como um grupo de sacerdotes do candomblé angola de Nova Iguaçu 'faz o social; 2) Cláudia Oliveira dos Santos (Mestrado em Modelagem e Ciência da Terra e Meio Ambiente/ UEFS, 2009) “Kosi omi, kosi orixá. Sem água, sem orixá. Modelagem etnoecológica sobre uso da água no Ilê Axé Iyá Nassô Oká / Terreiro da Casa Branca, em Salvador-Bahia”; 3) Felipe Rodrigues Martins (Mestrado em Ciências e Meio Ambiente/ UFPA, 2015) “Candomblé e Educação Ambiental: uma possível e contrutiva relação”.

Também vale a pena registrar os trabalhos de José Flávio Pessoa de Barros e de Mãe Stela de Oxossi, especialmente os livros: 1) Ewe Orixá – Uso litúrgico e terapêutico dos vegetais nas casas de candomblé, escrito por Pessoa de Barros em parceria com Eduardo Napoleão (1999); 2) Epé Laiyé – Terra Viva, onde Mãe Stela passeia pelo universo infantil para falar de candomblé e meio ambiente (2009). 



José Flávio Pessoa de Barros (1943/2011) era professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e babalorixá fundador do Ilê Asé Omin Iwyn Odara, localizado em Cachoeiras de Macacu (RJ). Maria Stela Azevedo Santos, a Mãe Stela de Oxossi, é a atual ialorixá do Ilê Axé Opo Afonjá, localizado em Salvador (BA) e membro da Academia de Letras da Bahia.

Claro que não poderia deixar de lado o clássico “Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá” de Pierre Verger, fotógrafo e etnólogo francês (1902/1996). Iniciado babalaô em 1952, Verger recebeu o nome de Fatumbi, que significa “renascido pela graça de Ifá”. Ao longo de sua vida, Verger catalogou o uso de diversas plantas iorubas. O livro apresenta uma (pequena) parte de sua pesquisa (1995). 


Para finalizar, como sempre buscamos algum tipo de proteção, não custa nada ter em casa uma mudinha de espada de São Jorge! Aliás é bom lembrar que dia 23 de abril acabamos de comemorar o dia do santo guerreiro, sincretizado no Sudeste com Ogum, o orixá do ferro e senhor dos metais - e no Nordeste com Oxóssi, o grande caçador. 

Deixo aqui uma dica sobre como preparar um vasinho de plantas de proteção para cuidar de sua casa e de você:

Compre ou peça (o melhor é ganhar!) mudas de: arruda, comigo-ninguém-pode, pimenta, alecrim, manjericão, espada-de-são-jorge, abre-caminho e guiné. Plante em um vaso de tamanho grande ou uma jardineira. Use adubo orgânico. Coloque as mãos na terra e converse com as plantas. Peça proteção a todos os orixás, principalmente ao dono das folhas: Ossain, “Ewe assá!” – Afinal de contas, “Omi Kosi, Éwé Kosi, Òrìsà Kosi”: Sem água, sem folha, sem orixá!


Espada de São Jorge

P.S: Uma versão desse texto foi publicada no livro: SOUZA, Daniel (Org). Juventude e Justiça socioambiental: perspectivas ecumênicas. 01. ed. São Leopoldo: Cebi, 2012. v. 1000. 152p.

Ana Gualberto
Yaô d’Oxum do Ilê Adufé
Historiadora, Mestranda em Cultura e Sociedade - UFBA
Assessora de KOINONIA

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